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A tirania dos direitos: o individualismo e o colapso do bem comum

O individualismo exacerbado e a multiplicação de direitos sem responsabilidades corroem a vida comunitária e enfraquecem a democracia. (Foto: Imagem criada utilizando Chatgpt/Gazeta do Povo)

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Com a Revolução Francesa e a Declaração de Independência dos Estados Unidos, consolidou-se um conceito que vinha se desenvolvendo há muito tempo: a noção de indivíduo. A partir de então, os seres humanos passaram a nascer livres e iguais em dignidade e direitos.

Esses marcos inauguraram o início de um processo de institucionalização que visava garantir tais direitos, situando a vida social e política em torno da primazia do indivíduo. Contudo, essa centralidade trouxe consigo consequências inesperadas: o eclipse de responsabilidades, a multiplicação de demandas individuais e coletivas e a fragmentação da sociedade em categorias identitárias.

Em 1968, Garrett Hardin publicou seu famoso artigo "A Tragédia dos Comuns" na revista Science, no qual argumentava que os bens comuns — aqueles que não pertencem a ninguém em particular, mas são acessíveis a todos — tendem a entrar em colapso quando os indivíduos, agindo racionalmente, buscam maximizar seu próprio benefício.

Hardin usou uma pastagem aberta como exemplo: cada pastor tem um incentivo para aumentar seu rebanho, já que o ganho é pessoal, enquanto os custos são compartilhados. A longo prazo, a terra se degrada e os recursos se esgotam. A "tragédia", argumentou ele, não reside na tristeza, mas "...na solenidade implacável do desenvolvimento das coisas", isto é, na inexorabilidade do processo. Esse desenvolvimento inevitável, transmitido de geração em geração, confronta a humanidade com situações desconfortáveis que impulsionam a busca por soluções ou mudanças.

Viver e pensar a realidade, a política e a sociedade com base em direitos levou à legalização de todos os tipos de relacionamentos, regulando até mesmo os laços pessoais. Da mesma forma, desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão até os dias atuais, a vida política e social tem se configurado em torno dos direitos individuais. Essa expansão envolveu a extensão desses direitos a novos grupos, mas, longe de cessar, as demandas se multiplicaram, dando origem a uma proliferação de reivindicações e à criação de "novos direitos" em busca de reconhecimento legal.

O modelo de acumulação de direitos assenta-se numa lógica que vincula a dependência do indivíduo em relação ao Estado à falta de oportunidades. Numa perspectiva rousseauniana, se uma pessoa nasce boa e a sociedade a corrompe, responsabilizar aqueles que foram privados de oportunidades é complexo: cabe então ao Estado assumir esse ônus. Assim, os direitos são atribuídos ao indivíduo, enquanto as obrigações recaem sobre a sociedade organizada por meio do Estado.

Se o interesse individual não garante o bem comum, é necessário rever quais liberdades individuais são defensáveis e quais devem ser limitadas para salvaguardar o interesse geral.

Com o tempo, essa dinâmica levou à crença de que tudo pode ser conquistado sem compensação, criando um desequilíbrio entre o aumento de direitos e a diminuição de responsabilidades

O resultado foi uma cidadania desconectada da esfera pública, com menor comprometimento político, desencanto com as instituições e um crescente recuo para interesses privados. O bem comum foi relegado ao esquecimento.

Autores como Kymlicka e Norman observaram que muitos liberais clássicos se baseavam na busca de interesses privados para equilibrar naturalmente o sistema, como em A mão invisível, de Adam Smith (Kymlicka, W., e Norman, W.; "The Return of the Citizen: A Review of Recent Work in the Theory of Citizenship").

No entanto, vale a pena questionar se uma ordem espontânea pode emergir no "mercado de direitos" em benefício do todo. Hardin responde negativamente: se o interesse individual não garante o bem comum, é necessário rever quais liberdades individuais são defensáveis e quais devem ser limitadas para salvaguardar o interesse geral. Isso requer não apenas instituições fortes, mas também um nível mínimo de virtude cívica, responsabilidade e engajamento cívico.

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O individualismo excessivo ignora limites e responsabilidades. Um exemplo disso foi a revolta social de 2019, quando o uso do espaço público para protestos levou a ocupações arbitrárias e restrições ao direito à livre circulação. O slogan "quem dança passa" ilustrou a banalização das normas de convivência; os limites, de alguma forma, perderam o sentido, como se exercer um direito sem restrições não implicasse necessariamente limitar os direitos dos outros, afetando a vida em comunidade.

Direitos, por definição, são limitados. Somando-se a esse fenômeno, há a judicialização de direitos, que frequentemente adia soluções estruturais. O caso das Isapres, no Chile, é ilustrativo: diante do aumento dos custos dos planos de saúde, milhares de membros recorreram à justiça. O acúmulo de queixas individuais acabou precipitando a crise do sistema de seguros privados, evidenciando como a defesa isolada dos direitos individuais pode minar o interesse público sem resolver o problema subjacente.

Tocqueville já havia alertado, nos Estados Unidos, sobre o risco do individualismo, entendido como uma tendência espiritual que isola os cidadãos de seus pares e os faz acreditar que são independentes. Portanto, pertencer a uma comunidade e a uma identidade compartilhada é essencial para neutralizar o que Kymlicka e Norman chamam de "cidadania diferenciada", ou seja, a proliferação de direitos de grupo que fragmentam a sociedade e corroem a noção de bem comum.

O problema não é a busca por justiça diante de abusos, mas a tendência a consagrar como direitos meras expressões de sentimentos ou interesses particulares

A lei não pode regular emoções. A natureza inflada dos direitos dificulta o diálogo, aprofunda divisões e corrói a vida comunitária.

Vários fatores podem ameaçar a estabilidade democrática, mas poucos são tão corrosivamente silenciosos quanto o individualismo excessivo. Ele fomenta o isolamento, corrói a comunidade, promove a irresponsabilidade cívica, coloca-nos uns contra os outros e enfraquece o nosso sentido de unidade.

A liberdade constitui o arcabouço prévio indispensável para os direitos, mas também permite a proliferação de demandas. Cabe às instituições políticas — especialmente aos partidos — discernir quais interesses representarão de acordo com suas declarações de princípios, articulando-os em um discurso racional capaz de se sustentar no espaço deliberativo, de forma responsável e não sujeita à maximização de votos. Devem também propor um mecanismo robusto para sancionar o tratamento diferenciado. Nem tudo se resolve com a criação de direitos; nem toda necessidade é única, nem todo interesse merece proteção. Direitos, por definição, são limitados.

Assim como Hardin alertou que nem todos os pastores poderiam pastorear seus rebanhos indefinidamente no mesmo campo sem destruí-lo, uma sociedade também não pode multiplicar direitos sem limitar seus fundamentos.

A chave está em chegar a um consenso sobre o que constitui um direito, quais são suas garantias e, acima de tudo, quais são seus limites.

Somente um equilíbrio entre direitos e deveres, dentro de uma estrutura de virtudes cívicas compartilhadas, sustentará uma comunidade política organizada em prol do bem comum e não em prol da soma desarticulada de interesses particulares.

©2025 Revista Suroeste. Publicado com permissão. Original em espanhol: La tragedia de los derechos

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