Em pleno século XXI, o mundo ainda se defronta com os horrores da guerra, como se os dois grandes conflitos mundiais do século passado, somados às guerras do Vietnã, das Malvinas e do Golfo, para citar somente algumas, não tivessem sido suficientes para desnudar o sofrimento humano imposto pelas disputas bélicas. Há quase um mês vimos assistindo à guerra entre Israel e Hamas/Gaza, eclodida após o ataque terrorista do Hamas, com um saldo sangrento de cerca de 15 mil vítimas fatais; crianças decapitadas; idosos torturados; mulheres violentadas, espancadas e depois assassinadas; centenas de cidadãos sequestrados; vidas abreviadas, famílias dizimadas e cidades destruídas.
A barbárie se repete e se propaga, a ponto de praticamente colocar em segundo plano das atenções mundiais a invasão da Rússia à Ucrânia, conflito que já dura cerca de 19 meses, com bombardeios aéreos, disparos de mísseis, operações da infantaria e da esquadra naval, tudo desafiando a diplomacia mundial. Não bastasse a crueldade que o conflito representa por si só, ainda ressuscitou o fantasma da utilização de armas nucleares, ameaça que parecia adormecida desde o fim da Guerra Fria.
É sempre bom lembrar o ex-primeiro ministro britânico Neville Chamberlain (1869-1940): “Na guerra, seja qual for a parte que se diga vencedora, não há ganhadores: todos são perdedores”.
Momentaneamente ofuscado no noticiário, o conflito entre Rússia e Ucrânia já soma cerca de 560 mil vítimas, entre mortos e feridos, segundo divulgou o jornal norte-americano The New York Times. Do lado russo, são 120 mil militares mortos e outros 180 mil feridos. Entre os ucranianos, 70 mil militares e 60 mil civis mortos, e 130 mil pessoas feridas. A infraestrutura está em ruínas e muitas cidades foram destruídas por completo. Um saldo estarrecedor em todos os aspectos.
Em menos de dois anos, o conflito no leste europeu já consumiu cerca de US$ 800 bilhões e especialistas especulam que os gastos dessa guerra podem chegar à cifra recorde de US$ 1 trilhão, o correspondente a cinco vezes o Produto Interno Bruto (PIB) da Ucrânia. Como se vê, os custos financeiros e humanos são tão grandiosos quanto o ódio que alimenta a beligerância entre países, seja por questões históricas, econômicas, territoriais ou religiosas, ou mesmo pela estupidez de alguns governantes.
A par dessas guerras declaradas, noticiadas praticamente em tempo real pelas redes de comunicação mundiais, uma outra guerra se desenrola: a da informação não profissional, com batalhas de narrativas travadas por simpatizantes de ambos os lados, cada qual tentando impor a sua versão, tomada como verdade absoluta.
Como explicar um país democrático que tem entre seus principais aliados os países do Brics que a cada dia se expande com a inclusão de nações avessas à democracia?
O Brasil, felizmente, não se envolve em conflitos bélicos desde a Segunda Grande Guerra. República federativa que possui a democracia em seu DNA, tem no preâmbulo da Constituição Federal de 1988 “a instituição de um Estado democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos fundados na harmonia social e comprometida na ordem pacífica, interna e internacional”.
Mas como explicar, no âmbito internacional, um país democrático que tem entre seus principais aliados os países do Brics que a cada dia se expande com a inclusão de nações avessas à democracia, além de privilegiar e acolher países com regimes totalitários, como Irã e Arábia Saudita?
Há, ainda, outro dilema a ser considerado: o de um país que é pacífico, porém, não enxerga suas guerras internas, que estão sendo perdidas por se ignorar suas feridas e suas vítimas. Elas existem, embora o Brasil figure entre a 8ª e 9ª posição entre as maiores economias do mundo, possua a 5º maior extensão territorial entre os países e abrigue a 7ª maior população do planeta. Um país gigante e cheio de riquezas, que sempre alimenta o sonho de ser protagonista mundial embora esteja longe de oferecer qualidade de vida ao seu próprio povo.
Nós, brasileiros, perdemos para nossas guerras internas quase 100 mil compatriotas todos os anos, o que requer uma solução humanitária urgente.
A primeira guerra interna perdida pelo Brasil é o trânsito. Temos o segundo pior trânsito do mundo, atrás apenas da Rússia (o “R” dos Brics), de acordo com pesquisa realizada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em parceria com o site britânico The Market, publicada em maio de 2023. A violência do trânsito brasileiro causa 47 mil mortes por ano, o correspondente a toda a população de Morrinhos (GO), Sena Madureira (AC), Capão Bonito (SP) e Campo Maior (PI). Número que pode ser ainda maior se considerados os óbitos posteriores de feridos, que não integram de imediato as estatísticas oficiais.
As razões são conhecidas: estradas e vias públicas construídas sem os padrões de segurança e muitas vezes com manutenção precária, desrespeito aos limites de velocidade, motoristas dirigindo sob efeito de álcool, enfim, uma somatória de fatores envolvendo fiscalização precária, governos incompetentes e maus governantes. Além das vidas perdidas, há outra questão importante: estudos apontam que o país perde cerca de R$ 50 bilhões por ano com os acidentes de trânsito, considerando-se a queda de produção das vítimas e os custos das internações e tratamentos hospitalares.
O número de homicídios é a segunda guerra interna perdida. Em números absolutos, o Brasil foi o país com maior número de assassinatos em 2022, total de 47,5 mil vítimas fatais. Embora tenha havido uma ligeira queda no ano passado em relação à série histórica, o país continua perdendo um número absurdo de vidas anualmente para a violência urbana, principalmente jovens e negros. O problema é igualmente sério em números absolutos. O Brasil é o quinto país do mundo com maior número de homicídios por grupo de 100 mil habitantes. Agrava a situação o baixo índice de elucidação desse tipo de crime, que não chega a 10% dos casos.
O Brasil ainda está perdendo a guerra contra as drogas, que destroem famílias e estimulam a violência. O país convive, sem resposta adequada, com facções criminosas atuantes em todos os estados da Federação, que disputam os pontos de venda e o mercado de armas, com transações que atingem bilhões de reais, e impõem suas regras e vontades, controlando territórios, subjugando a população local, sempre com ameaças de violência e morte, inclusive à luz do dia.
O país não foi capaz de deter o crescimento dessas facções, que controlam o crime mesmo de dentro dos presídios e já ostentam ramificações internacionais. Os governos das últimas décadas falharam na fiscalização das fronteiras terrestres – mais de 16 mil km –, marítimas e fluviais. Além disso, há abundância de portos e aeroportos clandestinos, localizados onde o Estado não chega.
É hora de buscar caminhos, com humildade para reconhecer os erros e aprender com eles, com coragem e transparência, e sem perder tempo buscando culpados.
O Brasil também está perdendo a guerra da violência contra as mulheres, fenômeno crescente a despeito do endurecimento da legislação, notadamente com a Lei Maria da Penha e o advento das medidas protetivas. O problema torna-se ainda mais grave porque o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que as mulheres já são 51,1% da população brasileira. O país tem 6 milhões de mulheres a mais do que homens, porém segue vitimando sua população feminina.
A quarta edição da pesquisa Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil, realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, permite estimar que cerca de 18,60 milhões de mulheres foram vítimas de violência em 2022. De forma simples e objetiva, significa que o número de brasileiras vitimizadas é suficiente para lotar, todos os dias, um estádio de futebol com capacidade para 50 mil pessoas (50.000 x 365 dias). Mulheres negras de baixa escolaridade, com filhos e divorciadas são a maioria nessa triste estatística. A realidade é dura e cruel: a incidência da violência contra a população feminina no Brasil é 33,4% maior que a média global, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).
Uma quinta guerra interna também tem desfecho de derrota: as desigualdades regionais e sociais que se acentuam, sem expectativa de reversão. As discrepâncias são abissais. Um único estado (São Paulo), ocupando apenas 2,92% do território nacional, abriga 21,16% da população brasileira e produz 31,56% do PIB brasileiro. Enquanto isso, em 82,39% do território nacional (19 estados e o Distrito Federal), com quase metade (45,71%) da população brasileira, são produzidos apenas 29,77% do PIB.
Hoje o Brasil busca o papel de protagonista na solução das guerras internacionais enquanto é coadjuvante nas próprias guerras internas. É necessário inverter essa lógica.
A renúncia fiscal federal, que segundo a Constituição deve ser concedida para atenuar as desigualdades regionais, nos governos das últimas três décadas, paradoxalmente tem destinado 63% a 65% do valor renunciado para beneficiar as regiões mais desenvolvidas do país. Trata-se de um volume enorme de recursos, entre 4,5% a 5,0% do PIB, ou seja, R$ 470 bilhões a R$ 530 bilhões, dinheiro que faria muita diferença para o desenvolvimento das regiões do norte e nordeste. Os reflexos disso entre os cidadãos é evidente. Em 2022, a renda média dos brasileiros habitantes das regiões norte e nordeste foi de 31% a 35% menor do que a renda média nacional. Quando se fala em expectativa de vida, o quadro também é desolador. De acordo com o Censo 2022, os habitantes da Amazônia nascem com a expectativa de viver 5,5 anos a menos que os brasileiros de outras regiões.
As desigualdades se acentuam pelas ações do próprio governo, como fez muito recentemente agindo para que o Supremo Tribunal Federal (STF) retirasse de pauta a sequência do julgamento da ação para que a remuneração do FGTS seja feita por índice menos nocivo ao trabalhador. Faz o governo o papel de Hobin Wood às avessas porque tudo o que realiza é feito com recursos dos tributos pagos pela população somados aos endividamentos tomados junto ao Sistema Financeiro internacional e doméstico, em grande maioria a custo de Selic. Por outro lado, obras de habitação e saneamento são financiadas pelo trabalhador via subsídios do FGTS, remunerados abaixo da inflação. Há evidente injustiça e fomento aos privilégios que já são muitos no país.
O Brasil nada tem produzido de efetivo para a redução de todos esses índices vergonhosos a nível mundial. É um resultado pífio para a abundância de leis, discursos em profusão, aumento de ministérios e promessas fáceis em campanhas eleitorais. Nós, brasileiros, perdemos para nossas guerras internas quase 100 mil compatriotas todos os anos, o que requer uma solução humanitária urgente. É hora de buscar caminhos, com humildade para reconhecer os erros e aprender com eles, com coragem e transparência, e sem perder tempo buscando culpados. Afinal, os culpados somos todos: governos, os Três Poderes, classe política, sociedade civil e parcela importante da mídia.
O país dispõe de recursos financeiros para mudar essa realidade. Mas isso não basta. É preciso definir uma pauta mínima, começando por cumprir a Constituição, hoje ignorada, em seus artigos 1º (especialmente o inciso III), 3º (incisos III e IV), 5°, 6º, 43 e 165 (parágrafos 6° e 7°), que tratam dos valores da nação, das garantias e direitos fundamentais dos cidadãos, e da redução das desigualdades. Hoje o Brasil busca o papel de protagonista na solução das guerras internacionais enquanto é coadjuvante nas próprias guerras internas. É necessário inverter essa lógica. Não se trata, obviamente, de olhar somente para o próprio umbigo – lembrando o antigo ditado popular –, mas de zelar prioritariamente por nossa população, sofrida e quase sem esperança. É sempre bom lembrar o que disse o ex-primeiro ministro britânico Neville Chamberlain (1869-1940): “Na guerra, seja qual for a parte que se diga vencedora, não há ganhadores: todos são perdedores”.
Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”.
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