A recente decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), de mandar investigar o juiz José Jácomo Gimenes, da 1ª Vara Federal de Maringá (PR), levanta sérias preocupações sobre a independência do Judiciário brasileiro e reforça a preocupação com atuação expansiva do ministro. A rigor, uma sentença de primeira instância é cassada per saltum e o juiz é colocado sob investigação simplesmente por apresentar aparente (e apenas aparente) discordância de uma decisão do STF. Tal atitude é não apenas absurda, mas também prejudicial à própria essência da democracia e da independência judicial.
O juiz José Jácomo Gimenes havia decidido que a União deveria indenizar o ex-deputado estadual paranaense Homero Marchese em R$ 20 mil, devido à demora no desbloqueio de suas contas nas redes sociais. O bloqueio havia sido determinado pelo STF no âmbito do inquérito das Fake News (INQ 4781). Em reclamação proposta pela União, a decisão foi cassada pelo ministro Alexandre de Moraes, sob a alegação de que o juiz de Maringá teria invadido a competência do STF ao processar e julgar um pedido que poderia interferir na condução da investigação na corte. Moraes argumentou que tal decisão “desafia, não só a competência deste tribunal, como também o modo de condução de processo que tramita na Corte”, o que acarretaria prejuízos às investigações em curso. Nada disso.
Ao tomar uma medida que parece visar a punição de um juiz por sua decisão, Moraes contribui para a criação de um clima de medo e autocensura entre os magistrados de primeira instância
Em primeiro lugar, definitivamente não se poderia cogitar de reclamação na hipótese. O instrumento da reclamação reclama, na hipótese, uma excepcionalidade, conforme orientação do próprio Supremo, que não estava presente no caso concreto. Independentemente do cabimento da reclamação, fato é que a sentença não desafiou a decisão do ministro. As redes sociais do ex-deputado haviam sido bloqueadas pelo STF e depois, por posterior decisão judicial de primeira instância – para onde havia sido remetido o processo –, desbloqueadas. E essa ordem de desbloqueio demorou excessivamente para ser decidida e cumprida. E foi esse o único fundamento da sentença para condenar a União a indenizar. Algo singelíssimo. Ainda assim, o ministro reagiu – e reagiu de forma nitidamente desproporcional.
Na decisão, o ministro não se limitou a cassar a decisão do juiz de primeiro grau, mas também encaminhou o caso ao corregedor nacional de Justiça para a adoção de providências cabíveis contra o magistrado de primeira instância. Esse tipo de medida coloca em xeque a independência judicial e cria um indesejável ambiente de intimidação entre os juízes de instâncias inferiores, que passam a temer retaliações ao proferirem decisões que possam desagradar os tribunais superiores.
A independência da magistratura em todos os graus de jurisdição é uma condição essencial para a manutenção de um sistema democrático saudável. Os juízes devem ter a liberdade de interpretar e aplicar a lei conforme seu entendimento, sem receio de serem investigados ou punidos por suas decisões. Quando um juiz de primeira instância é investigado por discordar de uma decisão do STF, a mensagem transmitida é clara: qualquer forma de divergência poderá resultar em consequências severas. Isso não apenas cerceia a independência judicial, mas também mina a confiança pública no sistema judiciário como um todo. Não se pode admitir o “crime de hermenêutica”, para citar a expressão de Rui Barbosa.
Ao ordenar a investigação do juiz maringaense, o ministro parece desconsiderar a importância da independência dos magistrados. Além disso, a atitude de Alexandre de Moraes é particularmente preocupante, pois provém de um magistrado do Supremo Tribunal Federal, a mais alta instância do Judiciário brasileiro. O STF deveria ser o guardião da Constituição e dos princípios democráticos, dentre os quais a independência judicial. Contudo, ao tomar uma medida que parece visar a punição de um juiz por sua decisão, Moraes enfraquece esses princípios e contribui para a criação de um clima de medo e autocensura entre os magistrados de primeira instância.
É essencial que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), agora provocado pelo ministro, atue de maneira imparcial e equilibrada, garantindo que as investigações e eventuais punições de juízes sejam fundamentadas em condutas claramente impróprias ou ilegais, evitando a criminalização da atividade jurisdicional. O papel do CNJ é assegurar que os juízes cumpram suas funções com integridade e independência, e não servir como uma ferramenta para silenciar divergências – reais ou putativas – dentro do Judiciário.
A independência dos magistrados é um pilar fundamental de qualquer sistema democrático. A decisão de investigar um juiz de primeira instância pelo simples fato de, apenas aparentemente, discordar de uma decisão do STF é um grave atentado contra essa independência. Em mais um episódio de atuação expansiva, o comportamento do ministro Alexandre de Moraes, ao mandar investigar o juiz José Jácomo Gimenes, revela uma postura autoritária que não condiz com os princípios democráticos e coloca em risco a integridade e a credibilidade do sistema judiciário brasileiro. É imperativo que o Judiciário brasileiro preserve sua independência e que os magistrados possam exercer suas funções sem medo de retaliações.
Luiz Fernando Casagrande Pereira, advogado, é doutor em Direito pela UFPR e diretor da OAB-PR.
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