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Artigo

O drama silencioso da barriga de aluguel

(Foto: Dre Newsome/Pexels)

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Nas notícias sobre barriga de aluguel, a narrativa frequentemente gira em torno do desejo das “futuras mães”, especialmente se forem famosas, como nos casos recentes da atriz Lily Collins ou da escritora Chimamanda Ngozi Adichie. Mas o que acontece com as crianças que nascem com essa técnica? Que vestígios permanecem neles? E em gestantes?

A ativista e advogada francesa Olivia Maurel acaba de publicar em seu país “Où es-tu, Maman?” (“Onde você está, mamãe?”) (Editions du Rocher), um livro onde ela conta sua história em primeira pessoa e que em breve também estará disponível em espanhol. 

Três anos atrás, graças a um teste genético, Olivia descobriu algo que suspeitava há muito tempo: sua mãe não era sua mãe biológica, pois ela havia nascido por meio de barriga de aluguel tradicional. 

Essa revelação permitiu que ela descobrisse sua identidade e se reconciliasse com seu passado. Hoje, ela não tem pudores em falar sobre a síndrome do abandono e outros transtornos que sempre a acompanharam.

Maurel é agora porta-voz da Declaração de Casablanca, uma iniciativa internacional que reúne um grupo de especialistas que defendem a abolição universal da barriga de aluguel. 

Em 8 de abril, ela se reuniu com o Bureau Permanente da Conferência de Haia. A mensagem deles é clara: enquanto a barriga de aluguel continuar, milhares de crianças se encontrarão em uma situação indefesa.

– A publicação do seu livro foi notícia na vizinha França. O que escrever este livro significou para você: reabrir feridas ou curá-las?

– Escrever este livro foi um processo intenso, uma mistura de catarse e confronto. Por um lado, significava reabrir certas feridas, revisitar memórias às vezes dolorosas. Mas, ao mesmo tempo, colocar em palavras essas experiências me permitiu dar sentido a elas, domesticá-las e, de certa forma, superá-las. Foi um ato de vulnerabilidade e resiliência.

– Não sei se você suspeitava que sua história pessoal se tornaria uma causa global: por que você decidiu torná-la pública?

– Sinceramente, não imaginei que minha história tomaria tais proporções. No início, minha abordagem foi principalmente pessoal: eu precisava colocar em palavras o que havia vivenciado, para dar sentido à minha jornada. Mas logo percebi que minha história repercutia muito além da minha própria experiência. Recebi depoimentos de pessoas que se reconheceram, que encontraram valor na minha história. Isso me convenceu de que tornar público não era apenas um ato pessoal, mas também uma forma de mudar atitudes e abrir um diálogo necessário.

Fiquei triste e incompreendida quando descobri a verdade sobre minhas origens

– Desde então, você se tornou um porta-voz da Declaração de Casablanca, escreveu um livro, conheceu alguns de seus familiares biológicos e viajou para vários países. Mas seu relacionamento com seus pais também se deteriorou, e você tem sido criticada por suas declarações contra esse mercado que movimenta bilhões por ano. Valeu a pena embarcar no caminho do ativismo?

– É uma pergunta que já me fiz muitas vezes. O ativismo é um caminho exigente e muitas vezes doloroso, e as consequências pessoais não são insignificantes. Perder laços familiares e se expor a críticas e ataques é um preço muito alto a pagar. Mas quando vejo o impacto do meu comprometimento, os debates que ele abriu, as pessoas que finalmente se sentem ouvidas e apoiadas, sei que vale a pena. Se eu tivesse que fazer de novo, sim, eu tomaria a mesma decisão. Porque o silêncio não protege ninguém, e denunciar a injustiça, por mais poderosa que seja, é uma necessidade. Essa luta vai além da minha própria história. Trata-se de dar voz àqueles que não a têm.

Capa do livro "Où es-tu, Maman?" (Onde você está, mãe?), por Olivia Maurel. (Foto: Reprodução/Edições du Rocher)

– Você descobriu que sua mãe biológica era uma pessoa com transtornos psiquiátricos. Você guarda rancor dos seus pais por esconderem suas origens e por terem nascido por meio de barriga de aluguel?

– Não estou brava nem com ódio deles. Por muito tempo, me senti triste e incompreendida quando descobri a verdade sobre minhas origens, mas, olhando para trás, acho que eles fizeram o melhor que puderam com as informações e crenças que tinham na época. O que lamento não é tanto a escolha deles, mas o fato de não ter tido acesso à minha história desde o início. Crescer sem conhecer suas origens cria um vazio difícil de preencher. Mas hoje, mais do que ressentimento, sinto a necessidade de conscientizar sobre a importância da transparência e do direito de todos de saber sua história.

– Como resultado da sua presença na mídia, você foi contatada por outras pessoas que também nasceram por meio de barriga de aluguel. Existem características comuns em todos eles? Por que é tão difícil para eles compartilharem suas histórias?

– Sim, várias pessoas que, assim como eu, nasceram por meio de barriga de aluguel entraram em contato comigo, e o que me surpreende é o quanto temos dúvidas semelhantes. Muitos sentem uma profunda necessidade de entender suas origens, de conhecer a verdade sobre sua história e, ao mesmo tempo, se deparam com um enorme tabu.

Mesmo em sua forma “altruísta”, a barriga de aluguel ainda se baseia na separação deliberada entre a criança e a mulher que a gerou

O que torna tão difícil falar é o medo das reações. Expressar abertamente nossos sentimentos pode ser visto como um desafio à narrativa dominante, que apresenta a barriga de aluguel como um ato puramente altruísta, sem consequências. Há também o medo de magoar os pais que nos criaram, de sermos repreendidos, o que é uma forma de ingratidão. 

Esse silêncio pesa muito, e poder conversar com outras pessoas que estão passando pela mesma coisa é essencial para nos sentirmos fortalecidos e entendermos que nossas perguntas são válidas. Todos nós compartilhamos algum tipo de problema de saúde mental: depressão, transtorno de estresse pós-traumático complexo... Todos nós já sofremos.

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– A mesma polarização que se percebe em outros temas também está presente quando se trata de barriga de aluguel. Entre tudo e nada, sim e não, existe um meio termo, como a regulamentação ou a chamada barriga de aluguel altruísta ou ética?

– Muitas pessoas apresentam a regulamentação ou a chamada barriga de aluguel “altruísta” como uma terceira via, um meio-termo entre a proibição total e a comercialização. Mas, na realidade, mesmo nessas formas, a barriga de aluguel ainda se baseia em uma separação deliberada entre a criança e a mulher que a gerou. 

Na minha opinião, a questão principal não é apenas o quadro legal, mas os direitos fundamentais da criança. Não importa se a barriga de aluguel é comercial ou “altruísta”, a criança não tem voz ativa na transação. Sem o consentimento deles, é decidido que eles serão separados da pessoa que os deu à luz e, às vezes, eles nunca saberão nem mesmo parte de suas origens.

Em vez de tentar regulamentar uma prática inerentemente problemática, não deveríamos considerar alternativas que respeitem plenamente os direitos das crianças e das mulheres?

– Como você nasceu de barriga de aluguel, você fala muito sobre os direitos da criança, mas eu gostaria de lhe perguntar agora sobre as mulheres que são doadoras ou mães de aluguel. Que marca deixa nelas a participação numa gestação para outros?

– Mulheres que participam de barriga de aluguel, seja como mães de aluguel ou doadoras de óvulos, muitas vezes estão ausentes do debate público. Contudo, suas experiências merecem nossa atenção.

Muitas mães de aluguel testemunham um profundo apego ao bebê que carregam no ventre, mesmo tendo sido preparadas para a ideia de serem separadas dele. Esse vínculo biológico e gestacional não desaparece simplesmente porque um documento declara o contrário. Algumas sofrem sofrimento psicológico após o parto, sentimentos de vazio ou culpa. Outros percebem, às vezes anos depois, que lhes pediram para ignorar uma conexão que era muito real.

Entendo a dor profunda da infertilidade, mas a barriga de aluguel tem um impacto profundo na pessoa que nasce dela

Quanto às doadoras de óvulos, elas são frequentemente reduzidas a meros "materiais genéticos", sem nenhuma discussão real sobre as consequências a longo prazo. Elas têm a garantia de que estão fazendo uma “doação”, mas nem sempre lhes é dito que desse gesto nascerão crianças e que um dia poderão procurá-las. Algumas descobrem com o tempo que transmitiram uma parte de si mesmos a estranhos, sem nunca poderem conhecê-los.

Por trás da imagem de uma escolha livre e informada, muitas vezes há pontos cegos, coisas não ditas e realidades complexas que preferiríamos não ver. Somente ouvindo essas mulheres podemos entender o verdadeiro impacto da barriga de aluguel sobre elas.

– Agora você é mãe de três filhos. O que você diria a uma mulher que quer realizar seu sonho de ser mãe e para quem a barriga de aluguel parece ser a única opção? 

Eu pediria que você parasse e realmente considerasse a perspectiva da criança que você espera trazer ao mundo. Entendo a dor profunda da infertilidade ou o desejo de ter um filho biológico, mas a barriga de aluguel não é apenas um acordo médico ou legal: é uma decisão que tem um impacto profundo na pessoa que nasce dela.

Crianças concebidas por meio de barriga de aluguel não estão ali apenas para realizar um sonho. Elas são indivíduos que crescerão com seus próprios pensamentos, emoções e questionamentos sobre suas origens. 

Convido os futuros pais a refletirem sobre o que significa criar intencionalmente um filho sob um contrato que prevê a separação da mulher que os concebeu. A gravidez não é apenas um processo biológico: é uma experiência relacional profunda que molda tanto a mãe quanto o bebê de maneiras que não podem ser simplesmente transferidas para outra pessoa no nascimento.

Eu também os encorajaria a ouvir as vozes das pessoas nascidas por meio de barriga de aluguel, não apenas aquelas que dizem que estão felizes com isso, mas também aquelas que sofrem com sentimentos de perda, mercantilização ou confusão sobre sua identidade. Muitas vezes, essas perspectivas são descartadas ou ignoradas porque desafiam a narrativa dominante de que a barriga de aluguel é um ato de amor.

No final das contas, eu faria esta pergunta: o desejo de ter um filho justifica a criação de uma situação na qual essa criança possa um dia sentir uma perda profunda? O amor nunca deve ser construído sobre bases de separação e contratos. Há outras maneiras de construir uma família que não transformam as relações humanas em meras transações.

– O negócio da barriga de aluguel cresce ano após ano, e os passos para regulamentá-lo ou proibi-lo na legislação internacional são lentos. Você não se sente como um jovem Davi lutando contra o gigante Golias? Como você encontra motivação ou inspiração?

É verdade que, dada a magnitude da indústria da barriga de aluguel, com seus recursos financeiros colossais e sua influência no discurso público, é fácil se sentir pequeno. Mas a história de Davi e Golias nos lembra de algo essencial: não é o tamanho que determina o resultado de uma batalha, mas a determinação e a justiça da causa.

Minha motivação vem de todas as pessoas que me escrevem, que me dizem que se reconhecem no meu testemunho, que finalmente ousam colocar suas próprias experiências em palavras. Também vem de mulheres que se sentem usadas e reduzidas ao seu papel reprodutivo. Enquanto essas vozes forem silenciadas ou ignoradas, continuarei lutando para que elas sejam ouvidas.

A mudança é lenta, é verdade, mas o progresso está sendo feito. Mais e mais pessoas estão abrindo os olhos para as realidades da barriga de aluguel e questionando o modelo apresentado a elas. A história nos mostra que as batalhas por direitos fundamentais levam tempo, mas no final elas triunfam. Essa convicção é o que me dá forças para continuar.

– Como seu testemunho foi recebido nos países de língua espanhola? Teremos prazer em ver uma edição em espanhol do seu livro em breve?

– Minha história foi recebida com grande interesse nos países de língua espanhola, em grande parte graças aos especialistas de Casablanca que trabalharam lá em nosso nome. Tive a sorte de ser entrevistado por vários meios de comunicação e convidado para dar uma palestra em uma universidade em Barcelona. 

A resposta foi calorosa e comprometida, o que me comove profundamente. Tenho o prazer de anunciar que participarei como palestrante na Conferência sobre a Abolição da Barriga de Aluguel, que acontecerá em Lima, Peru, em junho de 2025. Também quero compartilhar que a edição em espanhol do meu livro será publicada em breve, graças ao Loyola Communications Group.

©2025 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol: “Esta lucha va más allá de mi historia. Se trata de dar voz a quienes no la tienen”

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