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No último final de semana, no dia 27 de abril, celebramos o centenário de nascimento de Raymundo Faoro. Jurista, ensaísta, cientista político e presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Faoro foi um brilhante intérprete da realidade nacional e defensor incansável do Estado Democrático de Direito. Passadas mais de duas décadas desde sua morte, suas ideias permanecem desconcertantemente atuais e essenciais à formação ética e crítica da advocacia de hoje e da que virá.
Nascido em Vacaria (RS), em 1925, Faoro trilhou uma trajetória que uniu direito, ciência social, política, literatura e resistência democrática. Graduou-se em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, atuou como advogado e como procurador do Estado do Rio de Janeiro. Foi, contudo, como pensador público e representante que alcançou projeção nacional. Sua obra mais conhecida, Os Donos do Poder (1958), é um dos marcos da teoria política brasileira, estudado em cursos de direito, sociologia e história por sua interpretação corajosa da formação do Estado nacional.
Raymundo Faoro nos ensinou que o poder sem limites corrompe, mas também que a resistência constrói. Neste centenário de nascimento, sua voz ainda deve ser ouvida para nos lembrar: ao Brasil não faltam apenas juristas competentes, mas também consciências comprometidas com a justiça
Faoro descreve o Estado brasileiro como contingência de um modelo patrimonialista herdado dos colonizadores, na qual não se distinguia claramente o público do privado, o que deu origem a uma elite que ocupa o poder e dele se apossa como se fosse propriedade pessoal. Na denúncia de Faoro, o servidor público que age como dono das instituições e dos recursos do Estado é o "dono do poder" que desde sempre assombra as estruturas brasileiras. Nada mais atual, em tempos de apropriação indevida do orçamento público pela elite política e pelo funcionalismo do andar de cima, repleto de privilégios.
Os Donos do Poder, com um lançamento inicialmente tímido, alçou a condição de clássico com a reedição ampliada de 1975. E como todo clássico, o livro precisa ser relido à luz dos novos impasses brasileiros — corrupção sistêmica, captura de instituições, uso indevido do poder público. Ler Faoro éencarar as raízes de nossas mazelas e pensar criticamente nos caminhos possíveis de superação para aquelas que ainda estão presentes.
À frente da OAB nacional entre 1977 e 1979, em plena ditadura militar, Raymundo Faoro protagonizou em Curitiba um dos momentos mais emblemáticos da história. A VII Conferência Nacional da Advocacia Brasileira, realizada na capital paranaense em 1978, foi palco do clamorpela restituição do Habeas Corpus, que havia sido suprimido pelo regime militar. Sob a liderança de Faoro e de Eduardo Rocha Virmond, então presidente da OAB Paraná, a Ordem assumiu um papel de vanguarda na resistência civil pacífica e na denúncia de abusos, torturas e violações de direitos humanos.
Com firmeza e equilíbrio, Faoro fez da OAB uma instância de resistência moral contra o arbítrio e plantou as sementes da nova advocacia que floresceria com a redemocratização. Exerceu a presidência da OAB como deve ser exercida. Firme na defesa de suas posições, sem perder a capacidade de diálogo institucional. A relação que manteve com o então presidente Ernesto Geisel é o exemplo maior dessa postura e referência para todo dirigente de Ordem.
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Em 1987, participou dos debates que precederam a Constituinte, defendendo firmemente a legalidade, a liberdade e os direitos fundamentais. Em textos publicados na Revista Istoé, criticou duramente os desvios do processo de transição. Sua casa, no Rio de Janeiro, tornou-se ponto de encontro de lideranças democráticas.
Nos anos 2000, já na condição de membro da Academia Brasileira de Letras, Faoro continuou a refletir sobre o Brasil, sempre com espírito questionador e profundo compromisso com a justiça. Mesmo após seu falecimento em 2003, Faoro permanece presente nas páginas que escreveu e nos valores que cultivou.
Para garantir o reconhecimento perene, o Conselho Federal da OAB criou em 2008 a Medalha Raymundo Faoro, destinada a personalidades que contribuíram significativamente para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito. A OAB Paraná tem uma visão crítica dos parâmetros adotados para a concessão da honraria, mas louva a ideia do resgate sistemático da história de Faoro. A entrega da medalha deveria sempre levar sempre em conta a influência de Faoro na consolidação das instituições e reafirmar seu legado como referência ética para a advocacia.
Os desafios institucionais do nosso tempo incluem tentativas de erosão das garantias constitucionais, polarização extrema, baixa disposição para o diálogo, discursos autoritários e desprestígio da política. Para enfrentá-los, a obra e a trajetória de Raymundo Faoro oferecem à advocacia uma rota de lucidez, não somente pelos valores, mas pela coerência entre teoria e prática.
Devemos olhar para Faoro não como uma figura do passado, mas como um espelho para o presente e um farol para o futuro. Inspirar-se nele é, sobretudo, recusar o conformismo e reabilitar o papel da advocacia como instrumento de transformação e vigilância democrática.
Raymundo Faoro nos ensinou que o poder sem limites corrompe, mas também que a resistência constrói. Neste centenário de nascimento, sua voz ainda deve ser ouvida para nos lembrar: ao Brasil não faltam apenas juristas competentes, mas também consciências comprometidas com a justiça. A história o fez centenário. Cabe à advocacia torná-lo eterno.
Luiz Fernando Casagrande Pereira, advogado, é presidente da OAB Paraná.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



