Durante a sessão do Supremo Tribunal Federal que, em 2012, considerou inconstitucional a criminalização do aborto realizado em casos de fetos com anencefalia, vários ministros que votaram favoravelmente à tese vencedora – incluindo o relator, Marco Aurélio Mello –, fizeram questão de dizer que não estavam abrindo portas para nenhum tipo de “aborto eugênico”. Mas, nestes 11 anos decorridos desde então, a brecha tem sido explorada, com maior ou menor sucesso, para ampliar a tolerância legal com a prática do aborto no Brasil. Se por um lado não prosperou a tentativa de permitir o aborto em casos de microcefalia decorrente do zika vírus, por outro lado nascituros vítimas de outras doenças graves têm sua eliminação garantida com aval judicial.
É o que acaba de acontecer com um portador de síndrome de Edwards no Paraná, cuja família recebeu autorização da 1.ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do estado para realizar o aborto. A síndrome de Edwards é uma doença causada pela presença de três cromossomos 18 em vez de dois. Essa anomalia tem uma série de consequências graves para seu portador, a ponto de a maioria das gestações nestes casos terminar com o aborto espontâneo; das crianças que chegam a nascer com vida, 90% falecem antes de completar um ano. Já em 2012 a Justiça começou a autorizar o aborto nesses casos, mas a estratégia inicial era a de alegar que a gestação colocava a vida da mãe em risco, afirmação que a literatura médica não endossava no caso da síndrome de Edwards, mas que servia ao menos para enquadrar o aborto nas excludentes de punibilidade do Código Penal.
Conceitos como os de “incompatibilidade com a vida” estão sendo indevidamente ampliados para autorizar judicialmente o aborto em cada vez mais situações diferentes da anencefalia
No entanto, o caso paranaense adotou uma via diferente, invocando uma analogia com a decisão de 2012 do Supremo. A discussão no STF versou apenas sobre os casos de anencefalia – e esse caráter restritivo foi mencionado, ainda que muito de passagem, nos debates ocorridos pouco antes da proclamação do resultado do julgamento –, o que inclusive foi apontado pela primeira instância da Justiça paranaense, ao negar o pedido para o aborto. Mas os desembargadores consideraram que, uma vez que a síndrome de Edwards teria efeitos semelhantes aos da anencefalia em termos de expectativa de vida extrauterina, o mesmo princípio estabelecido pelo Supremo poderia ser aplicado no caso em tela.
Este é um raciocínio perigoso, por ao menos dois motivos. O primeiro deles é o já mencionado caráter restritivo da decisão do Supremo; em nenhum momento os ministros discutem a possibilidade de autorizar o aborto para portadores de outras anomalias que não sejam a anencefalia. O segundo é o fato de que, embora a síndrome de Edwards tenha consequências que muitas vezes levem à morte prematura dos bebês portadores, classificá-la como “incompatível com a vida” é uma extrapolação à qual as estatísticas não dão suporte. “A gravidade é altíssima, e não tem cura. Mesmo assim, não é correto falar que é incompatível com a vida. As crianças conseguem viver, ainda que por pouco tempo”, disse ao jornal O Globo, em 2017, a médica geneticista Chong Ae Kim, que à época era responsável pela Unidade de Genética do Instituto da Criança, em São Paulo, e acompanhou um estudo com 24 portadores da síndrome durante um período de 20 anos.
Por isso, não se pode invocar a “falácia do plano inclinado” para rejeitar a afirmação de que estamos diante de uma tendência fatal, a de ampliar indevidamente conceitos como os de “incompatibilidade com a vida” para autorizar judicialmente o aborto em cada vez mais situações diferentes da anencefalia. Não se trata, nem por um minuto, de minimizar a dor das famílias – especialmente das mães, que levam essas crianças no ventre – que recebem um diagnóstico devastador, seja o de anencefalia, seja o de síndrome de Edwards, seja o de qualquer outra anomalia. As redes de apoio de que tanto falamos nos casos de gestações para as quais a militância quer fazer acreditar que o aborto é a única resposta são ainda mais necessárias nestes casos. Trata-se, isso sim, de reconhecer o valor de toda vida humana e alertar para que ela não seja relativizada por quaisquer tipo de critérios. A Islândia praticamente erradicou a síndrome de Down da maneira mais macabra possível: abortando quase 100% dos fetos diagnosticados com esta anomalia genética. Algo assim não se faz da noite para o dia: há um lento processo de desumanização de doentes, dos quais a eliminação dos “inviáveis” é apenas o começo. Gostem ou não os ministros do Supremo, o nome disso é, sim, eugenia.
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