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Editorial

Supremo reforça a autocracia ao criminalizar “desinformação”

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Alexandre de Moraes lê seu voto no julgamento do "núcleo 4" do "processo do golpe". (Foto: Rosinei Coutinho/STF)

O show trial brasileiro conhecido como “processo do golpe” encerrou mais uma etapa. Na terça-feira, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal condenou os sete réus do chamado “núcleo 4”, formado por cinco integrantes ou ex-integrantes do Exército, um agente da Polícia Federal e um civil (o presidente do Instituto Voto Legal, Carlos Cesar Moretzsohn Rocha). Eles foram condenados a penas que vão de 7 anos – no caso de Moretzsohn Rocha – até 17 anos de prisão, no caso do major da reserva Ângelo Denicoli; todos ainda terão de pagar multa.

A condenação não surpreende – qualquer um que tenha acompanhado todo o processo sabe que ela era certa desde o início; também não é surpresa que Luiz Fux tenha sido a voz da sensatez no julgamento, sendo o único voto divergente. Mas, para além do arbítrio generalizado que vem marcando o julgamento como um todo, bem como o outro show trial, o dos réus do 8 de janeiro, o que o julgamento do “núcleo 4” marca é a intenção clara do Supremo de criar lei penal para punir qualquer discurso tido como inconveniente, violando os princípios da tipicidade e legalidade, e atacando (mais uma vez) a liberdade de expressão.

Cada “núcleo” do processo responde por um tipo específico de ação: o “núcleo 1” ou “crucial” (ao qual pertence o ex-presidente Jair Bolsonaro) seria o responsável pelas principais decisões relativas ao suposto golpe; o “núcleo 2” é o jurídico-operacional, que teria, por exemplo, elaborado a “minuta do golpe”; o “núcleo 3” respondia pelas “ações táticas” – é onde estão enquadrados os chamados “kids pretos”; e o “núcleo 5” é o “núcleo de uma pessoa só”, o empresário Paulo Figueiredo Filho, radicado nos Estados Unidos. O “núcleo 4”, cujo destino acaba de ser selado, é o dito “núcleo de desinformação”. E essa palavra resume toda a acusação da Procuradoria-Geral da República.

Nesta terça-feira, quatro ministros do STF decidiram inventar um crime sem que houvesse lei a respeito, e condenar sete pessoas com base nesse novo crime: uma aberração inominável

De acordo com o procurador-geral Paulo Gonet, os réus teriam espalhado “desinformação” sobre a urna eletrônica, e “ficou claro o impacto do seu comportamento para o desfecho violento do 8 de janeiro de 2023”, segundo a denúncia oferecida pela PGR – a pirueta jurídica necessária para se imputar aos réus o “pacote completo” de crimes deste processo: organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração do patrimônio público. E foi com essa argumentação que os ministros condenaram todos os sete réus (Alexandre de Moraes absolveu Moretzsohn Rocha das três últimas acusações, mas o condenou pelas duas primeiras). O relator Moraes, por exemplo, afirmou em seu voto que “é uma falácia, é uma mentira absurda, criminosa e antidemocrática dizer que essa utilização de ataque à Justiça Eleitoral, de ataque ao Poder Judiciário, de ataque à democracia, de discurso de ódio, que isso é liberdade de expressão; isso é crime, isso é crime tipificado no Código Penal”.

Lamentamos que ninguém tenha perguntado a Moraes que artigo do Código Penal seria este, que tipifica a difusão de informações falsas ou “desinformação”. E Moraes tem de respirar aliviado por não ter enfrentado o questionamento, pois a resposta não existe; ele teria de vasculhar todo o Código Penal à procura de tal artigo, e não o encontraria. A razão é simples: no Brasil, não é crime questionar a lisura da urna eletrônica, não é crime criticar o Supremo ou o Tribunal Superior Eleitoral, não é crime nem mesmo espalhar informações falsas ou “desinformação”, estando ou não ciente de sua falsidade. Moraes e seus colegas de turma podem achar tudo isso insensato, desaconselhável, moralmente reprovável – e, em alguns casos, talvez de fato o seja; mas, na ausência de uma lei devidamente aprovada pelo Congresso que inclua tais atos no Código Penal, não poderiam jamais considerá-los criminosos.

É simplesmente inaceitável, uma aberração jurídica inominável, que membros de uma corte constitucional desconheçam ou ignorem – difícil saber qual das duas opções é a pior – os princípios da legalidade e da tipicidade, cláusulas pétreas presentes respectivamente nos incisos II (“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”) e XXXIX (“não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”) do artigo 5.º da Constituição Federal. Mas, nesta terça-feira, quatro ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram inventar um crime sem que houvesse lei a respeito, e condenar sete pessoas com base nesse novo crime.

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Como se não bastasse, Moraes ainda afirmou, durante o julgamento, que sua invenção ainda estabelece um precedente para 2026. “Todos que insistem em desinformação devem saber, ficar atentos já com esse precedente do STF. Fica o alerta para que cessem essas atividades nas eleições do ano que vem”, ameaçou, como quem realmente acredita que sua vontade legisladora é suprema: aquilo que Moraes (ou qualquer um de seus colegas) decidir que é crime será criminalizado. Aquilo que Moraes (ou qualquer um de seus colegas) considerar ofensivo, incômodo, inadequado, ainda que nem de longe se trata de afirmação factual, mas de opinião ou análise, será enquadrado no maleável rótulo de “desinformação” e seu autor poderá passar uma ou mais temporadas na prisão.

Mais uma vez, a pretexto de combater “ataques à democracia”, Moraes e os colegas que o seguiram – Cristiano Zanin, Cármen Lúcia e Flávio Dino – atacaram a democracia. Não violaram apenas o princípio da separação de poderes, criando lei penal quando só o Congresso pode fazê-lo; violaram o princípio da legalidade e, novamente, se arvoraram como tutores do discurso no Brasil, decidindo o que pode ou não pode ser dito, prendendo e ameaçando prender mais no futuro. Nenhuma democracia digna do nome inventa crimes por jurisprudência, muito menos criminaliza discursos de forma tão ampla e sob um conceito tão fluido quanto o de “desinformação”. Cada vez mais à vontade no papel de “editores de um país inteiro”, para usar a infeliz expressão de Dias Toffoli, os ministros do Supremo estão se tornando os únicos donos da palavra no Brasil.

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