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Jardineiros, pedreiros, vigilantes, motoristas e babás que entraram ilegalmente nos Estados Unidos formavam a maior parte do grupo de 88 brasileiros deportados pelo governo de Donald Trump no fim de semana. A reportagem apurou com fontes da Polícia Federal que eles são trabalhadores autônomos, que trabalhavam por diárias, e entraram nos EUA nos últimos anos, a maioria pela fronteira com o México, e não possuíam quaisquer documentos que permitissem a permanência no país, nem como turistas nem estudantes. Não havia foragidos da justiça, procurados pela Interpol, nem condenados.
A aeronave americana que trazia os imigrantes ilegais de volta ao Brasil teve que fazer uma parada não prevista em Manaus, no Amazonas, por problemas técnicos. Lá, os repatriados foram vistos descendo do avião algemados pelas mãos e pés e acorrentados pela cintura, o que motivou uma onda de críticas. O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, considerou a situação como "constrangimento inaceitável", embora o uso de algemas seja empregado pela imigração americana para deportados há anos, inclusive no governo anterior, do democrata Joe Biden. Somente no ano passado, mais de três mil brasileiros foram deportados pelos EUA.
A Gazeta do Povo enviou pedido ao Ministério das Relações Exteriores sobre o perfil dos deportados, de onde são e onde estavam nos Estados Unidos, bem como a forma que o governo brasileiro pretende questionar o governo norte-americano sobre a deportação, mas o ministério não respondeu aos questionamentos até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto.
No entanto, uma apuração feita pela Gazeta do Povo revela que o voo fretado pelo governo americano, que saiu de Alexandria, no estado da Luisiana, ainda na sexta-feira (24), trazia em sua maioria homens com faixa etária inferior aos 55 anos, seguido por mulheres, crianças e adolescentes dos estados de Minas Gerais, Espírito Santo, Mato Grosso, Rondônia e Roraima.
Eles estavam detidos nos EUA, sob custódia do Serviço de Imigração e Controle de Aduanas dos Estados Unidos (ICE), havia semanas ou meses. Ou seja, são brasileiros que não foram detidos pela imigração após a posse do governo de Donald Trump, que ocorreu na segunda-feira passada (20). O que Trump fez, segundo o advogado especialista em Direito Internacional Luiz Augusto Módolo, foi acelerar o processo de deportações, cumprindo uma promessa de campanha.
Todos os voos com deportados dos Estados Unidos chegarão ao Brasil pelo aeroporto de Belo Horizonte, em Confins (MG), independentemente do estado de origem dos deportados, por uma questão estratégica e de logística.
No primeiro voo estavam, em sua maioria, diaristas, jardineiros, pedreiros, vigilantes, motoristas e babás. Os adultos eram profissionais liberais que foram aos Estados Unidos para tentar a vida com trabalhos braçais.
Um dos deportados de 29 anos relatou ter gastado R$ 170 mil para tentar entrar de forma ilegal nos Estados Unidos há cerca de oito meses, mas negou que tenha feito isso com o auxílio de coiotes. Ele foi preso em San Diego, na Califórnia.
Outro brasileiro de 51 anos que estava entre os deportados disse que morava nos Estados Unidos havia 35 anos quando foi pego pelo setor de imigração semanas atrás. Um homem que trabalhava como pedreiro nos Estados Unidos disse que ficou detido por seis meses até a deportação nesse fim de semana.
Uma família, incluindo um casal e dois filhos crianças, morava na Flórida havia dois anos. Duas semanas atrás, uma das crianças com autismo aguardava por um atendimento no serviço público local quando a família toda foi apreendida. Segundo o governo americano, entre os deportados estavam brasileiros flagrados ilegalmente em diferentes locais dos EUA.
Problemas técnicos do avião causaram desentendimentos entre deportados e tripulação
Além de estarem algemados, os deportados brasileiros denunciaram agressões por parte dos agentes de imigração dos EUA durante a viagem ao Brasil. Antes de descer em Manaus, a aeronave já havia feito um pouso não programado no Panamá por problemas técnicos. Segundo relatos dos deportados à PF, eles teriam sido agredidos naquele momento, após reclamarem que o ar condicionado da aeronave não estava funcionando e que algumas pessoas estavam passando mal. Eles também relatam acesso limitado à água e alimentação. Um dos deportados disse que não tomava banho havia cinco dias.
O delegado da PF que esteve no aeroporto em Manaus, Sávio Pinzon, disse que, em solo brasileiro, houve desentendimento entre os tripulantes e os deportados, momento em que os passageiros conseguiram abrir uma porta de emergência por onde desembarcaram do avião.
A PF retirou as algemas, mas os agentes de migração dos EUA queriam esperar um novo avião fretado pelo governo americano para levar o grupo ao destino final, em Belo Horizonte e, para isso, pretendia algemá-los novamente o que não foi permitido pela PF, por determinação do Ministério da Justiça e Segurança Pública, sob o argumento de que já estavam em solo brasileiros e não ofereciam riscos.
Após uma série de desentendimentos, os imigrantes passaram a noite em uma área reservada no aeroporto de Manaus e seguiram para Minas Gerais em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) designado pelo governo brasileiro.
No Brasil, os deportados passaram pelo sistema de migração. Segundo o Ministério da Justiça, se alguém tivesse mandados de prisão em aberto seria preso e os demais seriam liberados. Entre os deportados não havia foragidos da justiça.
O Itamaraty confirmou que o Brasil concorda com os voos de repatriação com base em acordo firmado com o governo americano, que vale desde 2018, para reduzir o tempo de permanência dos brasileiros em centros de detenção norte-americanos, por imigração irregular e já sem possibilidade de recurso, mas disse considerar “inaceitável que as condições acordadas com o governo norte-americano não sejam respeitadas".
A Polícia Federal relatou que os brasileiros deportados pelos Estados Unidos não costumavam desembarcar em solo brasileiro algemados ou acorrentados.
Brasil e EUA têm visões diferentes sobre o tratamento aos deportados
Um acordo firmado por meio de comunicados e notas diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos em 2021 permitiria o uso algemas nas deportações. O governo brasileiro dizia à época que isso ocorreria apenas quando houvesse risco à segurança dos passageiros e da tripulação.
Já o governo norte-americano afirmava que faria uso de algemas durante os voos, mas que elas seriam removidas assim que o avião pousasse em solo brasileiro sem que as pessoas descessem das aeronaves nestas condições.
Os documentos, porém, não mencionam o uso de algemas nas mãos e pés, correntes ou outras medidas mais severas.
A embaixada americana no Brasil disse apenas que "os cidadãos brasileiros do voo de repatriação estão sob custódia das autoridades brasileiras" e não se pronunciou sobre a utilização das algemas, correntes e as denúncias de agressões.
A ministra brasileira dos Direitos Humanos, Macaé Evaristo, disse que se tiver uma escalada dos voos com deportados para Confins com a mesma característica dos que chegaram no último fim de semana, o governo brasileiro vai criar um posto avançado para atendimento, incluindo serviços psicológicos e médicos.
Quatro dos 88 deportados que são da região Norte do Brasil foram liberados ainda em Manaus e não precisaram fazer o trajeto da viagem até BH.
Investigadores da PF do Amazonas instauraram um procedimento interno para apurar as denúncias de agressões e maus-tratos, que pode se transformar em um inquérito policial, apesar de a instituição não ter jurisdição para investigar autoridades americanas. As apurações serão enviadas para órgãos internacionais de cooperação e ao departamento americano responsável pela imigração.
Deportações de imigrantes ilegais devem se intensificar, alerta advogado
Para o advogado Luiz Augusto Módolo, especialista em Direito Internacional, a tendência é que os processos de deportação dos EUA se intensifiquem nos próximos dias, não apenas de brasileiros, mas de todas as nacionalidades.
“Trump de fato começou a cumprir suas promessas de campanha, a exemplo do aplicativo móvel CBP One, que permitia a entrada de migrantes nos Estados Unidos por meio dos postos de entrada na fronteira com o México, que parou de funcionar logo depois da posse [dia 20 de janeiro]”, recorda.
O advogado lembra ainda que desde o primeiro dia do governo Trump foram assinadas diversas ordens executivas, equivalente a decretos, sobre temas relacionados à imigração.
“Uma das ordens vai tornar mais difícil a concessão de vistos para aqueles considerados como de risco para a segurança nacional, inclusive determinando a deportação imediata daqueles que já estejam nos EUA. Até pedidos de refúgio ou entrada de apátridas sofrerão checagens mais rigorosas”.
Outra ordem, lembrada pelo advogado, foi literalmente chamada de “proteger o povo americano contra a invasão”.
“A política dos EUA passa a ser fielmente a de executar as leis de imigração contra todos os estrangeiros inadmissíveis e removíveis, especialmente os que representem risco à segurança, com revogação de ordens executivas, especialmente da era Biden, contrárias a esta diretriz. O procurador-geral [Matt Gaetz] está orientado a priorizar os processos criminais relacionados a ofensas de imigração ilegal”.
Módolo comenta ainda que países que se recusem a colaborar com essas políticas poderão sofrer sanções. Um desses exemplos foi o impasse com o governo da Colômbia no fim de semana. O presidente Gustavo Petro se recusou a receber aeronaves com deportados daquele país, mudando de ideia horas após o governo Trump anunciar sanções econômicas contra a Colômbia.
As medidas também terão reflexos internos aos estados americanos, no caso de governadores e prefeitos não contribuírem com a política anti-imigração.
“Cidades-santuário, que gerarem obstrução às políticas federais de imigração, terão cortado acesso a recursos federais [pelo governo dos Estados Unidos]. O combate ao tráfico de crianças para os EUA também será priorizado e benefícios sociais para imigrantes ilegais serão cortados”, descreve o advogado.
EUA alegam invasão de imigrantes ilegais em larga escala
Trump também instituiu a ordem "securing our borders", (protegendo nossas fronteiras, em Português). Nela, o presidente declarou que os EUA sofreram uma invasão de estrangeiros ilegais em larga escala nos últimos quatro anos, o que, segundo ele, serviu de biombo para a entrada de terroristas, criminosos e espiões.
A Ordem Executiva "Protecting the Meaning and Value of American Citizenship" (protegendo o significado e o valor da cidadania americana, em Português), sob a alegação de proteger e valorizar a cidadania americana, considera que não será mais automática a concessão de cidadania americana a qualquer um nascido nos EUA, especialmente filhos de imigrantes ilegais.
A ordem Realigning the United States Refugee Admissions Program (realinhando o programa de admissão de refugiados dos Estados Unidos, na tradução para o Português), por sua vez, ordenou que o programa de concessão de refúgios nos EUA seja completamente revisto, afirmando que a excessiva entrada de refugiados gerou um grande peso para diversas cidades americanas, que tiveram seus serviços públicos prejudicados com o aumento da demanda.
Segundo o advogado, na prática, impostos dos contribuintes americanos tiveram que financiar políticas públicas para imigrantes ilegais, o que para Trump é inadmissível.
Pela Ordem Executiva Clarifying the Military’s Role in Protecting the Territorial Integrity of the United States (esclarecendo o papel dos militares na proteção da integridade territorial dos Estados Unidos), as Forças Armadas americana foram convocadas à defesa do território americano, inclusive no combate à imigração ilegal em massa.
Pela ordem Declaring a National Emergency at the Southern Border of the United States foi declarada uma emergência na fronteira com o México, alinhando as políticas das demais ordens executivas.
Na ordem Initial Rescissions of Harmful Executive Orders and Actions (rescisões iniciais de ordens executivas e ações prejudiciais, na tradução para o Português), uma série de ordens executivas da administração de Joe Biden sobre diversos assuntos foram revogadas, incluindo ordens sobre imigração em massa e entrada de ilegais nos EUA.
“Pelas medidas já anunciadas e em vigor, Trump cumpriu diversas promessas de campanha (...) Não apenas estancou a sangria da imigração ilegal, que teria o condão de fato de destruir o tecido social da América, sobrecarregar a adequada prestação de serviços e gerar risco à segurança nacional, os coiotes são traficantes de pessoas, aliados dos cartéis mexicanos e terroristas de outros países como Irã, como passou um recado a países como o México(...) que não podem mais ser cúmplices ou omissos na questão, sob pena de serem punidos e sancionados”, reforça.
Segundo avião de deportados brasileiros em 2025
Neste ano o Brasil já recebeu dois voos com deportados em Confins, Minas Gerais. O primeiro ocorreu no dia 10 de janeiro e trazia pelo menos 100 pessoas já na reta final da gestão de Joe Biden. O segundo, do dia 25, ocorreu já no governo de Trump.
No domingo (26), a Casa Branca disse que um brasileiro condenado por homicídio culposo foi preso em Boston, Massachusetts, pelo Serviço de Imigração e Alfândega dos Estados Unidos.
O homem foi detido no sábado (25) e, portanto, não estava no grupo deportado no fim de semana. O governo americano também revelou a identidade, foto e nacionalidade de outros oito homens presos nos dias 24 e 25, classificados como “alguns dos piores”, sugerindo que o número total de detenções pode ser maior.
Os presos incluem, além do brasileiro, três mexicanos, dois hondurenhos e cidadãos da Jordânia, El Salvador e Etiópia. O comunicado detalha que os crimes dos detidos vão desde abuso infantil até suspeitas de terrorismo associadas ao Estado Islâmico.
Ao comentar as prisões, o presidente Donald Trump reafirmou seu compromisso com a segurança nacional dos EUA.
“Não há responsabilidade maior do que proteger nosso país contra ameaças e invasões, e é exatamente isso que estamos fazendo, em um nível nunca antes visto”, declarou. Ele também enfatizou que a ação representa uma promessa de campanha que está sendo cumprida.