Enquanto o Senado se prepara para votar uma proposta de emenda constitucional (PEC) que praticamente acaba com as decisões monocráticas do Supremo Tribunal Federal (STF), a Câmara dos Deputados tem na gaveta um projeto de lei mais brando, segundo o qual os ministros continuariam podendo suspender, de forma individual, leis aprovadas no Legislativo.
O Projeto de Lei 3640/2023 foi concebido por uma comissão de juristas, criada em 2020 pelo então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e que foi presidida pelo ministro Gilmar Mendes, do STF. Em maio deste ano, a proposta foi entregue ao atual presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) e, em julho, passou a tramitar oficialmente, após ser protocolada pelo deputado federal Marcos Pereira (Republicanos-SP), que é vice-presidente da Casa.
Em setembro, o projeto de lei recebeu sugestões de mudança na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), onde aguarda parecer do relator, Alex Manente (Cidadania-SP), para ser votado. Se aprovado no colegiado, ele segue para o Senado, sem precisar passar pelo plenário da Câmara dos Deputados. Embora tenha circulado pela cúpula da Câmara, ainda não há data prevista para a votação do projeto na Casa.
O texto proposto pelos juristas reunidos por Gilmar Mendes diz que um ministro do STF poderá suspender de forma monocrática uma emenda constitucional, lei, decreto, medida provisória, medida administrativa do governo “em caso de extrema urgência, perigo de lesão grave, excepcional interesse social, ou ainda, em período de recesso”.
A avaliação dessas condições, no entanto, ficará a cargo do próprio ministro, que deverá justificar a necessidade de análise monocrática. Sua decisão, diz o texto, deverá basear-se em posição do plenário do STF sobre o tema e deverá ser submetida para referendo ou rejeição dos demais ministros na primeira sessão de julgamento após sua assinatura.
Mas, se por qualquer motivo isso não ocorrer, não há nenhuma consequência – ou seja, a decisão monocrática continua valendo. Além disso, o ministro poderá, se julgar necessário, estabelecer um “regime normativo transitório para assegurar segurança jurídica”. Na prática, se derrubar uma norma, poderá criar outra no lugar, de forma provisória.
O projeto de lei, ainda assim, reforça que decisões monocráticas devem ser a exceção, e que, em regra, a suspensão provisória (liminar) de normas deve se dar de forma colegiada.
Alguns desses procedimentos já vêm sendo seguidos pelo STF nos últimos anos, especialmente em decisões que afetam políticas públicas definidas pelo Congresso ou pelo Executivo. No início do ano, a Corte aprovou uma mudança em seu regimento interno para que as decisões monocráticas sejam submetidas a referendo “imediatamente”, de preferência no plenário virtual – a regra, porém, não fixa um prazo determinado.
Já a PEC que está prestes a ser aprovada no Senado é mais dura. Proíbe que em qualquer tribunal um juiz profira uma decisão monocrática que suspenda a eficácia de lei ou norma com efeito geral, bem como atos do presidente da República e dos chefes da Câmara e do Senado. Ministros do STF também não poderão, individualmente, suspender projetos de lei ou tomar decisões que afetem políticas públicas.
Medidas assim só poderão ser tomadas pelo plenário da Corte, formada por 11 ministros. A única exceção é em período de recesso – nesse caso, se o presidente do STF decidir de forma monocrática, essa decisão, de caráter liminar (provisório), deverá ser submetida aos pares logo na volta dos trabalhos regulares.
Desde que a PEC foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, a aprovação no plenário é dada como certa – trata-se de uma prioridade do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
Já a aprovação na Câmara, porém, ainda é uma incógnita. O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), que controla a maioria dos deputados, tem evitado dar um veredicto sobre a matéria, mas já sinalizou que não terá como segurar a pressão por mudanças no STF, em razão da crescente insatisfação de parlamentares com o ativismo judicial.
Projeto capitaneado por Gilmar Mendes
Dois juristas que fizeram parte da comissão que elaborou o projeto capitaneado por Gilmar Mendes disseram à reportagem, sob reserva, que a proposta, se aprovada, poderia representar uma solução de paz: contemplaria, em alguma medida, deputados e senadores incomodados com o poder individual dos ministros, e não criaria um problema com os ministros do STF.
Em sua justificativa, o projeto de lei diz que as regras propostas buscam consolidar, na lei, entendimentos que o STF construiu na jurisprudência para julgar as chamadas ações de controle concentrado de constitucionalidade, isto é, aquelas que questionam se determinado ato normativo obedece aos princípios e direitos determinados pela Constituição.
São regras e procedimentos que aplicam-se, portanto, às ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs, que buscam derrubar uma lei, por exemplo); a ações diretas de inconstitucionalidade por omissão (ADOs, que buscam forçar o Congresso a legislar para que um direito possa ser exercido); às ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs, que buscam confirmar se determinada lei é constitucional); e das arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPFs, que podem questionar normas de forma mais abrangente, para verificar se elas atendem a princípios mais abstratos e dispersos na Constituição).
“O presente anteprojeto busca atualizar a legislação à prática decisória do STF, além de apresentar inovações que conferem maior estabilidade, sofisticação e efetividade ao controle concentrado de constitucionalidade”, diz a justificativa.
Em relação às decisões cautelares (provisórias), diz que sua “submissão automática ao referendo do colegiado na primeira sessão de julgamento subsequente à sua prolação e sua concessão monocrática apenas em situações muito excepcionais privilegiam a colegialidade no âmbito do STF”.
Na Câmara, o projeto já recebeu nove emendas (sugestões de modificação) do deputado Kim Kataguiri (União-SP). Quase todas buscam reduzir a interferência do STF sobre o Legislativo. Uma delas inclui na lei a finalidade de “mínima intervenção do Poder Judiciário na atividade legislativa e administrativa”. “É necessário pôr freio ao ativismo judicial, consistente na invasão da competência dos outros Poderes pelo Poder Judiciário”, escreveu o deputado.
Uma de suas emendas, no entanto, amplia o tempo de validade de uma decisão monocrática. Se no projeto original ela deve ser submetida a referendo na primeira sessão após sua prolação, Kataguiri dá a ela um prazo de 90 dias de validade. Se o plenário confirmar a monocrática, terá então três anos para o julgamento definitivo, de mérito.
Outras emendas, de qualquer modo, buscam reduzir o alcance da interpretação dos ministros ao julgar uma lei. O projeto diz que eles podem se basear não apenas na Constituição, mas também na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em tratados internacionais de direitos humanos assinados pelo Brasil e em decisões de tribunais internacionais de direitos humanos.
Para Kataguiri, essa previsão é muito ampla e a interpretação deve se liminar à Constituição brasileira. “Admitir a expansão do parâmetro de controle seria equivalente a dar um poder ainda maior ao já poderosíssimo Poder Judiciário, que hoje se encontra, na prática, acima dos outros dois Poderes”, afirmou o deputado.
O projeto também diz que ministros podem julgar uma lei se houver “divergência doutrinária” sobre sua constitucionalidade. Na prática, bastaria que juristas e acadêmicos questionassem sua validade. Para Kataguiri, a divergência deve ser apenas jurisprudencial, ou seja, deve haver dúvida nos tribunais acerca da aplicação da lei.
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