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ADPF das favelas

Entrada em favelas, uso de helicóptero: como o Judiciário interfere no trabalho da polícia e na segurança

Polícia Militar
Determinações do Judiciário impactam em ações à segurança pública. (Foto: Albari Rosa/Arquivo/Gazeta do Povo)

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O Supremo Tribunal Federal (STF) volta a julgar nesta quarta-feira (5) a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635 que ficou conhecida como a ADPF das Favelas. Os ministros vão decidir se uma série de limitações a operações policiais em favelas do Rio de Janeiro continuarão em vigor ou serão alteradas.

Essas restrições ao trabalho da polícia vêm sendo impostas por decisões liminares do STF desde 2019 e tinham inicialmente o alegado objetivo de reduzir a violência policial. Naquele ano, a polícia foi impedida de fazer operações em morros de favelas por causa da pandemia de Covid-19.

Depois disso, outras medidas foram impostas, como a proibição do uso de helicópteros em ações policiais e a obrigatoriedade de a polícia comunicar a órgãos locais sua intenção de fazer operações, o que tirou o fator surpresa das ações.

A ADPF tramita na Corte desde 2019 por iniciativa do Partido Socialista Brasileiro (PSB), do vice-presidente Geraldo Alckmin, que questiona a “letalidade e o desrespeito aos direitos humanos nas operações policiais no Rio de Janeiro”. O julgamento foi suspenso em novembro do ano passado após a leitura do relatório do ministro Edson Fachin, relator da ação, e das manifestações das partes do processo.

O PSB justificou, ao ingressar com a ação, que “em vez de buscar prevenir mortes e conflitos armados, incentiva a letalidade da atuação dos órgãos policiais”.

Todas as medidas adotadas pelo STF são intervenções controversas em atribuições do governo local e ajudaram no fortalecimento das facções criminosas, segundo analistas ouvidos pela reportagem.

“Algumas decisões da Justiça são tomadas sem o devido embasamento técnico e prático com foco principal na proteção de quem está confrontando com a polícia [criminosos], sem considerar o necessário apoio e proteção dos policiais e da sociedade. Estas decisões dificultam o trabalho policial e expõem a sociedade aos criminosos”, alerta o advogado, coronel da reserva da Polícia Militar e especialista em segurança pública, Alex Erno Breunig.

Enquanto o Supremo e o governo investiam em políticas como desencarceramento de presos, descriminalização da maconha e "humanização" das abordagens policiais, o número de facções criminosas em operação no Brasil saltou de 72 para 88 entre 2023 e 2024, segundo relatório da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), vinculada ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública.

Nos últimos anos, 72 dessas facções atuaram exclusivamente no estado onde foram formadas, enquanto 14 expandiram sua influência para estados vizinhos. O relatório aponta que duas delas, o Comando Vermelho (CV), originalmente do Rio de Janeiro, e o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, operam em nível nacional e internacional.

“Endurecer as leis contra a polícia e afrouxá-las para os criminosos é uma sentença de morte para a verdadeira justiça e permite o avanço das facções. Há tempos que vemos ONGs e partidos políticos atuando contra a polícia, em prol do crime, e os tribunais superiores, principalmente o STF, têm dado guarida a esses pedidos absurdos em detrimento da população”, opina o investigador aposentado do serviço federal de inteligência, Sérgio Leonardo Gomes. Para Gomes, “se a justiça é cega, alguns ministros do STF só enxergam o que lhes convém”.

A chamada ADPF das favelas não é a única ação das autoridades que está interferindo na ação da polícia. O combate ao crime vem sendo reduzido por ações do Executivo e do Judiciário sob a alegação de se preservar o respeito aos direitos dos criminosos e diminuir o número de vítimas inocentes nos choques entre policiais e bandidos.

Veja abaixo as principais decisões e políticas que já vêm impactando ou podem interferir no combate ao crime organizado.

Restrições à entrada da polícia em favelas

A tentativa de restringir a liberdade de ação da polícia em áreas dominadas pelo crime organizado no Rio foi o foco inicial da ADPF das Favelas. Ela foi colocada em prática em 2020 sob a alegação de evitar que operações policiais prejudicassem ações de saúde pública ou ajuda humanitária durante a pandemia de Covid-19.

As ADPFs são fruto de uma tese de ministros do STF de que a Corte tem que tomar medidas contínuas para corrigir o que considera problemas não tratados por autoridades. Mas isso não leva em conta que outros poderes podem não ter tomado certas medidas por entender que seriam negativas.

Para analistas, a decisão do Supremo repete uma prática fracassada do ex-governador Leonel Brizola (1922-2004) no Rio de Janeiro, em 1983. Ele proibiu a entrada da polícia nos morros argumentando que a construção de escolas para aumentar o nível de educação da população resolveria o problema da criminalidade. O resultado foi a consolidação da facção Comando Vermelho no estado.

Por causa da atual ADPF das Favelas, desde 2020 as operações em áreas pobres dominadas pelo crime ficaram restritas a casos excepcionais. A polícia passou a ter que notificar o Ministério Público e outros órgãos e agências antecipadamente sobre as ações. Segundo decisão do ministro Edson Fachin, passou a ser necessário “aviso antecipado de operações para autoridades de saúde e educação, para que sejam protegidas as escolas”.

As escolas e postos de saúde vazios também não puderam mais ser usados pela polícia como bases operacionais, o que aumenta a vantagem tática dos criminosos. Também foi iniciado o uso de câmeras corporais e o monitoramento do GPS dos carros de polícia. Além disso, uma rede de socorro médico a feridos tem que ser oficialmente mobilizada.

O atual governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), disse que sua gestão cumpre as regras do STF, mas alerta que restrições à atuação da polícia servem para fortalecer o crime organizado.

"Temos cumprido as regras, com redução de letalidade e câmeras nas operações, mas as restrições também fortaleceram o crime organizado, com mais disputas entre facções e aumento de barricadas", escreveu o governador em uma rede social.

Na prática, operações de larga escala continuam acontecendo, mas a polícia do Rio quer o fim da ADPF das Favelas. O secretário da Segurança Pública, Victor César dos Santos, vem afirmando que o sigilo das operações fica comprometido por causa do processo de comunicação prévia aos atores envolvidos.

“Se você avisar com antecipação quem quer que seja, não é uma operação com o caráter de flagrar criminosos. Se eu avisar outros entes que não figuras essenciais da segurança pública sobre operações, qual marginal você acha que ficará na comunidade? Ou mais, eles podem se armar até os dentes para avançar sobre a polícia e ter uma chacina de policiais. Para quem está no dia a dia das ruas, isso não existe”, destaca o sociólogo Marcelo Almeida.

Uso de helicóptero da polícia foi restringido

Em 2018, organizações não governamentais (ONGs) de defesa de direitos humanos começaram uma campanha para impedir que a polícia usasse seus helicópteros durante operações em favelas. Ativistas e moradores foram instruídos a gravar vídeos com celulares dos sobrevoos dos helicópteros durante ações nas quais é possível ouvir barulho de tiros. A ideia era alegar que a aeronave estava disparando e que havia um risco muito grande de balas perdidas atingirem moradores inocentes.

A ação ganhou força quando um adolescente de 14 anos foi morto no Complexo da Maré e sua mãe deu entrevista ao vivo nas TVs mostrando o uniforme escolar do filho ensanguentado. Ativistas alegaram que o tiro partiu do helicóptero da polícia, mas posteriormente se descobriu que o tiro partiu de um confronto em solo entre criminosos e um blindado da polícia.

Sérgio Leonardo Gomes descreve que muitas ONGs foram criadas ou "sequestradas" pelas máfias e facções criminosas para que atuem, inclusive no apelo judiciário, em prol da organização criminosa que os sustentam, não só seus membros, mas uma rede de corrupção que está infiltrada em todos os poderes e nas mais altas esferas.

Em morros do Rio, os criminosos geralmente se posicionam no alto de lajes de construções para disparar sobre a polícia de uma posição mais alta, o que gera uma grande vantagem no combate. Ao usar o helicóptero com um atirador armado de fuzil, essa vantagem tática do crime organizado é minimizada ou anulada.

Tribunais de primeira instância começaram a decidir sobre o caso e a PM parou de usar seus helicópteros, mas a Polícia Civil continuou. Em 2020, já no escopo da ADPF das Favelas, o STF restringiu totalmente o uso das aeronaves. No ano seguinte, os voos foram liberados, mas com a limitação de acontecerem apenas em operações excepcionais.

“Segundo informações trazidas na ação, como um decreto estadual que autoriza a utilização de helicópteros em confronto armado direto, as aeronaves estavam sendo utilizadas como plataforma de tiro”, disse o STF em ação rebatida pelo governo do estado à época.

O sociólogo Marcelo Almeida afirma que, diante de tantas determinações judiciais, muitos policiais estão acuados, deixando inclusive de operar suas funções constitucionais, com receio de responder a processos e passar por infindáveis investigações, em uma devassa profissional e jurídica.

“Não se defende, sob nenhuma hipótese, uma polícia que mata, mas uma polícia operante, atuante, confiante e sem medo de fazer o que precisa, profissionais que precisam defender a própria vida. O que se vê, no entanto, são operadores da segurança inseguros em exercer suas funções diante de tantas limitações, determinações do Judiciário, de quem sequer sabe como ocorre a segurança pública na prática”.

STF retoma julgamento sobre a legalidade da revista íntima em presídios

Em mais uma ação que interfere em políticas de segurança pública, o STF retoma também nesta quarta (5) a análise de um recurso extraordinário que pode determinar a inconstitucionalidade das revistas íntimas em visitantes de presídios, assim como a nulidade das provas obtidas nesses procedimentos.

O julgamento já contava com maioria formada no plenário virtual contra as revistas, mas foi interrompido após o ministro Alexandre de Moraes solicitar destaque, o que levou a sua reavaliação no plenário físico.

Em outubro de 2024, o placar estava em seis votos contra a revista íntima e quatro a favor, faltando apenas o voto do ministro Luiz Fux. A maioria dos ministros entendeu que esse tipo de inspeção é degradante e viola direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana e a privacidade. Além disso, a decisão pode impactar casos judiciais em que provas foram obtidas por meio dessas revistas, podendo levar à absolvição de acusados de tentar entrar com celulares e drogas em unidades prisionais.

O debate gira em torno, segundo o STF, da necessidade de equilibrar direitos fundamentais com a segurança nos presídios brasileiros, que somam mais de 1.400 unidades. O relator do caso, ministro Edson Fachin, defende a proibição das revistas íntimas, argumentando que são práticas humilhantes e que as provas obtidas dessa forma são ilícitas. O ministro Cristiano Zanin acompanhou o relator, mas sugeriu que revistas superficiais sejam mantidas até que todos os presídios sejam equipados com scanners corporais e detectores de metais, o que poderia levar até 24 meses.

Por outro lado, ministros como Alexandre de Moraes, Nunes Marques, Dias Toffoli e André Mendonça sustentam que a revista íntima é um recurso necessário para impedir a entrada de objetos ilícitos. Para eles, o procedimento deve seguir protocolos rígidos, como ser realizado apenas por agentes do mesmo sexo que o visitante.

O caso analisado pelo STF envolve uma mulher flagrada tentando entrar com drogas escondidas no corpo em um presídio do Rio Grande do Sul. O Tribunal de Justiça do estado considerou que a revista impediu a consumação do crime, mas o Ministério Público recorreu, alegando que a proibição dessas inspeções pode prejudicar o combate ao tráfico de drogas dentro das prisões.

A decisão do STF terá repercussão geral, ou seja, servirá como referência para todos os tribunais do país. Enquanto organizações de direitos humanos argumentam que as revistas são degradantes e violam garantias individuais, especialistas em segurança pública alertam para o risco de aumento no fluxo de drogas e celulares para dentro das prisões caso a prática seja proibida.

Com interferência sobre o legislativo, STF descriminalizou uso da maconha

O STF definiu em junho do ano passado, em uma ação que deveria ter sido adotada pelo Legislativo, a tese de repercussão geral sobre a descriminalização do porte de maconha para uso pessoal. Por maioria, os ministros estabeleceram que será considerado usuário quem for flagrado com até 40 gramas de cannabis ativa ou até seis plantas fêmeas.

No julgamento de Recurso Extraordinário, a Corte concluiu que o porte de maconha não configura crime, mas uma infração administrativa, sem impacto na ficha de antecedentes criminais. As sanções previstas incluem advertência sobre os efeitos da substância e participação em programas educativos.

Os ministros destacaram que a definição de 40 gramas ou seis plantas fêmeas não é absoluta e que a polícia pode apreender a droga e conduzir o indivíduo à delegacia, mesmo por quantidades inferiores, caso haja indícios de tráfico, como embalagem específica, variedade de drogas, balanças ou registros de venda.

Por outro lado, o delegado deverá justificar detalhadamente qualquer decisão que descaracterize o porte para uso pessoal, evitando critérios arbitrários. O juiz do caso poderá considerar provas da condição de usuário para afastar o enquadramento como tráfico, mesmo se a quantidade apreendida for superior ao limite estabelecido.

O STF determinou que o Conselho Nacional de Justiça, em conjunto com os poderes Executivo e Legislativo, implemente medidas para garantir o cumprimento da decisão. Além disso, recomendou a realização de mutirões carcerários com a Defensoria Pública para revisar e corrigir prisões que tenham desrespeitado os novos parâmetros.

O tribunal também enfatizou a necessidade de aprimorar políticas públicas voltadas ao tratamento de dependentes químicos, evitando que usuários sejam “estigmatizados”.

"Ninguém no Supremo defende o uso de drogas, pelo contrário, desestimulamos o consumo", afirmou o presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, à época. Ele ressaltou que a falta de critérios claros tem sido uma política ineficaz e que a distinção entre usuário e traficante ajudará a reduzir o encarceramento excessivo, evitando que prisões sirvam como “fonte de recrutamento para o crime organizado”.

Desencarceramento em massa: STF deve impor execução do Plano Pena Justa aos estados

Na sequência da descriminalização da maconha, o STF iniciou o processo de homologação do chamado Plano Pena Justa, iniciativa do governo federal voltada ao desencarceramento em massa e à suposta melhoria das condições nos presídios brasileiros. Estados e o Distrito Federal terão prazos que variam de seis meses a três anos para implementar as medidas estabelecidas.

O plano prevê ações como a ampliação do uso de tornozeleiras eletrônicas para reduzir a população carcerária, aumento da oferta de trabalho e renda para detentos, fortalecimento da Defensoria Pública para garantir o direito à defesa e melhorias nas condições sanitárias dos presídios, incluindo a emissão de alvarás de vigilância sanitária.

Governadores, principalmente do Sul e Sudeste, manifestam preocupação com a medida. Argumentam que não foram consultados na formulação do plano e que ele pode gerar impactos preocupantes na segurança pública. Além disso, alguns gestores já demonstraram oposição a outras iniciativas do governo federal na área, como a PEC da Segurança Pública com base no Sistema Único de Segurança Pública (Susp).

O CNJ, mais uma vez, ficou responsável por monitorar o cumprimento do plano, enviando relatórios periódicos ao STF. A Suprema Corte justifica a necessidade da medida alegando superlotação nos presídios e violações massivas de direitos humanos. Especialistas apontam que o peso da implementação recairá sobre os estados, sem que tenham sido agentes decisivos na formulação das diretrizes e que isso deverá provocar, de imediato, reflexos no avanço da criminalidade.

STF vai decidir neste mês se guardas municipais têm poder de polícia

Em mais uma ação do Judiciário sobre a segurança pública, o STF retoma em 13 de fevereiro o julgamento de outro Recurso Extraordinário, que discute se as guardas municipais têm competência para realizar policiamento comunitário e preventivo em vias públicas.

O tema, que já está em análise pelo plenário desde o fim do ano passado, conta até o momento com quatro votos a favor e um contra. Os ministros Dias Toffoli, Luiz Fux (relator), Flávio Dino e André Mendonça votaram a favor da autorização para que as guardas municipais exerçam essa função, enquanto Cristiano Zanin se posicionou contra. A decisão final do STF terá repercussão geral, ou seja, servirá como referência para todo o país.

A Associação Nacional das Guardas Municipais destacou que o Supremo tem reforçado a necessidade de controle externo do policiamento, tarefa essa que segundo a entidade vem sendo desempenhada pelo Ministério Público. Como parte desse esforço, a AGM Brasil firmou um acordo de cooperação técnica com o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), por meio da Ouvidoria Nacional de Combate à Violência Policial, para aprimorar a fiscalização e garantir que a atuação das guardas municipais seja eficiente e responsável.

A decisão do STF sobre a atuação das guardas municipais pode impactar diretamente a segurança pública em diversos municípios brasileiros, definindo os limites e atribuições desses agentes no policiamento preventivo. Atualmente cerca de 30% das GMs estão armadas pelo país. São 1,3 mil municípios que contam com cerca de 100 mil pessoas em seus efetivos.

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