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O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tenta "recalibrar" seu discurso sobre segurança pública e combate ao narcotráfico. Ao telefone com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, na terça-feira (2), afirmou "que a gente não precisa usar armas, a gente tem que usar a inteligência". Lula também acenou ao presidente norte-americano por auxílio no combate ao crime organizado e ao narcotráfico. Para especialistas, Lula pode estar se sentindo acuado - tanto no cenário interno como nas relações internacionais.
Para o doutor em Ciência Política e comentarista político internacional Leandro Gabiati, o presidente brasileiro acabou por admitir a necessidade de cooperação. “A agenda da segurança pública será um dos eixos das campanhas em 2026, e o que o governo provavelmente está tentando fazer, ao levar esse assunto para a agenda bilateral com Trump, é diminuir o caráter ideológico que há nessa discussão aqui no Brasil”.
Dessa forma, segundo o especialista, Lula poderá dizer que o governo está ativo e combatendo o crime organizado, inclusive com ações de cooperação entre Brasil e EUA. Outra amostra disso foi outra declaração do petista no telefonema com Trump: "vamos prender os brasileiros que estão aí", uma referência aos criminosos brasileiros que estão nos Estados Unidos.
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O avanço dos EUA no combate ao narcotráfico na América do Sul
Especialistas também avaliam um cenário crítico para o Brasil diante do avanço dos Estados Unidos no combate ao narcotráfico na América do Sul. O constitucionalista Alessandro Chiarottino acredita que o cenário internacional pressiona o governo brasileiro a demonstrar, em tese, uma maior firmeza no enfrentamento ao narcotráfico. “Por isso Lula tenta mostrar [a Trump] que o governo brasileiro tem combatido e irá combater as facções”, reforça.
Isso porque Lula acionou Trump nesta semana para tratar do tarifaço sobre produtos brasileiros, mas fez questão de colocar no centro da conversa o pedido para reforçar a cooperação no combate às facções transnacionais.
“Muito disso pode estar relacionado ao avanço dos norte-americanos em ações contra narcotraficantes na América do Sul, como embarcações venezuelanas abatidas sob suspeita de seguirem carregadas com drogas rumo aos EUA”, complementa.
Assim, o governo Lula vê os EUA cada vez mais próximos de suas fronteiras, forçando-o a dizer que o Brasil está agindo ao lado dos americanos, apesar de o discurso não ser compatível com as ações práticas.
“Há poucos dias, Lula disse que os traficantes eram "vítimas dos usuários", tem resistido em classificar facções como terroristas, como Trump pode e deverá fazer, mas afirma ter políticas de enfrentamento ao crime organizado. Algo no discurso não fecha”, alerta o especialista em segurança pública Sérgio Gomes, investigador aposentado das forças federais.
Essa movimentação de Lula ocorre depois de o Palácio do Planalto ter recusado o pedido dos Estados Unidos para que organizações como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) fossem classificadas como terroristas — demanda histórica de Washington, que considera a medida fundamental no enfrentamento a cartéis e facções aliadas ao narcotráfico internacional. Para críticos, Lula tenta recuperar terreno discursivo. De acordo com o comunicado oficial do governo brasileiro, Trump demonstrou “total disposição” para atuar ao lado do Brasil contra o crime internacional.
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O fator Venezuela e o incômodo geopolítico
O novo tom brasileiro surge em um contexto de tensão entre os EUA e a Venezuela. O governo Trump acusa o regime de Nicolás Maduro de dar suporte a narcotraficantes que enviam cocaína ao território americano e pressiona aliados regionais a assumir posição clara. Embora Lula tenha evitado citar Caracas na conversa, diplomatas reconhecem que o petista está sob forte escrutínio externo.
O doutor em Direito Internacional Luiz Augusto Módolo afirma que o governo Trump enxerga o narcotráfico como uma ameaça ainda mais ampla e estrutural aos EUA. Não se trataria apenas do impacto direto das drogas — como aumento de dependência química, queda de produtividade e corrupção de agentes de segurança —, mas de um risco crescente de cooptação do próprio sistema de Justiça norte-americano. “Fenômeno que já se observa em países profundamente influenciados por facções criminosas.
"A Venezuela está completamente tomada, o Brasil já vive um estado avançado com domínio territorial importante das organizações criminosas e até na Europa há sinais preocupantes, como relatos recentes envolvendo países como a Bélgica, por exemplo", afirma.
Módolo também destaca que, para os Estados Unidos, a crise venezuelana deixou de ser apenas um problema político e passou a ser vista como um vetor direto do crime transnacional, batendo à porta do Brasil.
Para ele, Trump adotou uma postura mais dura porque considera o regime de Maduro responsável por, além de “roubar uma eleição sem o menor pudor”, ameaçar militarmente vizinhos, como a Guiana, e inundar o mercado americano com drogas.
“O governo Trump decidiu tomar medidas concretas porque a Venezuela se tornou parte ativa da engrenagem do narcotráfico internacional e um fator de instabilidade regional. Lula não deve se sentir confortável com isso e então propôs essa ação conjunta”, avalia.
Para o analista em Direito Internacional, o Brasil e o governo Lula tentam se manter como mediadores regionais, mas o custo político de defender Caracas cresce à medida que o combate ao crime transnacional se torna prioridade global.
Outro ponto destacado é que a aposta brasileira de atuar como ponte entre Trump e Maduro pode se voltar contra o Planalto, caso o petista seja associado ao enfraquecimento do combate às facções que se conectam ao narcotráfico internacional.
“Muito disso se justifica no discurso de acenar por ajuda de Trump no enfrentamento ao crime organizado. Isso revelaria uma espécie de "boa vontade" em agir em cooperação, em parceria com os Estados Unidos e não sob a influência direta dos norte-americanos”, reforça Sérgio Gomes.
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O peso da segurança pública nas eleições em 2026
Outro cenário analisado se refere à política interna. A segurança pública está no topo das preocupações do eleitor brasileiro — e o governo tem sentido o peso desse termômetro político, em um ano em que a insegurança ultrapassa a economia como maior inquietação nacional.
Segundo a pesquisa Quaest, de 12 de novembro, 38% dos brasileiros apontaram a violência como maior preocupação. O instituto ouviu 2.004 pessoas entre 6 e 9 de novembro de 2025. A margem de erro é de 2 pontos percentuais para mais ou para menos. O nível de confiança é de 95%.
“Existe ainda outro ingrediente, o gesto — comemorado no Itamaraty como marco da retomada das relações — surge em meio à pressão da oposição, que acusa o governo de leniência e de não agir com firmeza contra facções que se expandem para outros países, além da pressão internacional com o avanço dos EUA em ações, como as no mar do Caribe”, atenta o cientista político Marcelo Almeida, especialista em segurança pública e relações internacionais.
Esse movimento também sinalizaria, de acordo com analistas, uma tentativa de Lula de se blindar para 2026, enquanto vê Trump avançando em ações contra o narcotráfico.
Para o cientista político, o Planalto tenta evitar um flanco político perigoso. “Ele sabe que não pode entrar em 2026 carregando o rótulo de leniente com criminosos, além do peso internacional em ações dos Estados Unidos em países próximos. A cooperação com Trump é uma tentativa, quem sabe, de reequilibrar essa narrativa e neutralizar o discurso da direita”.
O constitucionalista André Marsiglia alerta que, “se Lula endurece demais [o discurso contra a criminalidade], perde apoio de sua base; se não endurece, pode perder o país [nas eleições 2026]”. Para parlamentares da oposição, a postura de Lula é “incoerente”, já que seu governo tem adotado discursos e medidas consideradas lenientes no enfrentamento às facções e ao tráfico.
O vice-líder da Oposição, deputado Ubiratan Sanderson (PL-RS), critica o fato de Lula "subir no palanque" e falar contra o crime, mas na prática agir - e até afirmar - que o "traficante seria vítima". "Quer convencer quem? O Brasil precisa de ação, investimento e leis duras, e não de papo furado. Temos forças policiais preparadas para enfrentar o crime, mas falta vontade política desse governo", reforça.
O capitão Alberto Neto (PL-AM) foi além e chegou a afirmar que “Lula desmontou políticas de segurança e vive justificando traficante". "Depois aparece dizendo que vai combater o crime ao lado de Trump. Combater como? Com discurso? O Brasil está cansado de bravata. Precisamos de governo com pulso firme, não de presidente que só muda a conversa conforme a conveniência”, critica.
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Como o governo Lula tem tratado o tema crime organizado e terrorismo
Desde o início da atual gestão de Trump, o governo brasileiro tem rejeitado a tese de que facções deveriam ser enquadradas como grupos terroristas — algo que a oposição defende com vigor. O presidente da Comissão de Segurança Pública da Câmara, deputado Paulo Bilynskyj (PL-SP), tem defendido a equiparação e diz que a medida é essencial. Ao criticar a inércia do governo, afirma que a existência desses grupos é um atentado à soberania nacional.
O argumento da gestão petista é de que a legislação antiterrorismo no Brasil foi criada com finalidade diversa e que sua ampliação poderia trazer riscos a direitos e ao equilíbrio institucional. Especialistas avaliam que o contexto mudou com o PCC e CV avançando para o Norte do país, aliando-se a cartéis e ampliando sua presença na América do Sul. Diante disso, cresce a cobrança da oposição e de parte da sociedade por maior rigor.
Até agora, o governo federal tem apostado em uma asfixia financeira de grupos criminosos e inteligência policial, uma estratégia reforçada nas recentes operações da Receita Federal e Polícia Federal, citadas por Lula a Trump, mas isso não seria o suficiente, segundo Sérgio Gomes.
Ele avalia que o governo só está correndo para se reposicionar. “O Planalto percebeu que não há mais espaço para discurso minimalista sobre punição. O eleitor quer firmeza - e rápido -, só nos resta saber quanto disso é verdadeiro e não uma resposta simplista às pressões, internas e externas”.
Para Módolo, se os EUA deixassem Lula em paz, “ele continuaria tratando traficantes como vítimas da sociedade e sendo leniente”. “Ele está sendo forçado a colocar um "colete meio apertado" [- adotar uma postura que talvez não quisesse -], inclusive em um contexto de relações internacionais”.
O deputado federal Rodrigo Valadares (União-SE) avalia que, enquanto Trump fala em combater o crime organizado, Lula tenta reposicionar o discurso. “Esse é o mesmo presidente que vive repetindo que o "usuário é vítima" e o ‘traficante é injustiçado’. É o governo que afrouxou o enfrentamento às facções. Conversar com Trump não apaga o caos que ele próprio causou na segurança pública”.
Já o deputado Coronel Tadeu (PL-SP) também aponta a incoerência de Lula. "Conversar qualquer um conversa, difícil é ter coragem de enfrentar o crime sem ideologia e sem proteger aliados", critica.
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Tarifas, crime e cálculo político
A ligação entre Lula e Trump, que não constava na agenda oficial, também tratou da retirada parcial do tarifaço de 40% sobre produtos brasileiros. Para analistas, há uma tentativa de troca simbólica: cooperação na segurança em troca de avanços comerciais. O que pode reforçar o caráter pragmático da reaproximação entre os governos, além de o Brasil dizer que está atuando para combater o narcotráfico.
Alessandro Chiarottino avalia que Lula age para evitar que as organizações criminosas brasileiras sejam enquadradas pelos EUA como organizações terroristas, o que traria consequências iminentes ao Brasil.
No campo doméstico, o governo tenta provar que se importa com as vítimas e não apenas com garantias de acusados, e ainda precisar responder aos anseios da população que está preocupada com a segurança. No plano internacional, tenta demonstrar alinhamento estratégico sem romper completamente com velhos aliados regionais, como a própria Venezuela.
“A fronteira entre geopolítica e política doméstica nunca esteve tão porosa. A guinada no discurso de Lula é clara. Por ora, as pressões externa e interna podem tornar o governo mais assertivo ou expô-lo ainda mais às contradições que tenta administrar”, completa Sérgio Gomes.












