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No documento entregue na noite desta terça-feira (18) pela Procuradoria-Geral da República (PGR) ao Supremo Tribunal Federal (STF) que denuncia o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e mais 33 pessoas por um suposto plano de golpe de Estado, o procurador Paulo Gonet assume que não houve fraude nas eleições de 2022 e diz que Bolsonaro e os outros citados tinham pleno conhecimento disso. O texto de Gonet diz que, mesmo assim, os denunciados mantiveram o discurso sobre problemas e falhas no sistema eleitoral para estimular um golpe. A defesa de Bolsonaro nega todas as acusações e diz ter recebido com estarrecimento e indignação a denúncia.
A narrativa acusatória da PGR de que Bolsonaro sabia que não teria havido fraude nas urnas, mas assumiu discurso contrário, foi elaborada pelo procurador-geral com base principalmente em um relatório das Forças Armadas realizado antes das eleições de 2022. Em novembro de 2022, o Ministério da Defesa disse que o relatório enviado ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre a fiscalização do sistema eletrônico de votação não encontrou fraudes no momento da inspeção, mas também mostrou que as urnas não eram invulneráveis.
Porém, para embasar sua narrativa na denúncia desta terça, a PGR usa trecho do depoimento do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro Mauro Cid. “O colaborador se recorda que a primeira conclusão da comissão das Forças Armadas era pela inexistência de qualquer fraude no processo eleitoral e na utilização das urnas eletrônicas, porém, o então presidente Jair Bolsonaro não aceitou essa conclusão das Forças Armadas e exigia do então Ministro da Defesa, general Paulo Sérgio, que demonstrasse a existência de supostas fraudes”.
Segundo a denúncia, Cid teria dito que aliados de Bolsonaro levantaram informações sobre vulnerabilidades das urnas em paralelo ao relatório militar. O procurador-geral escreveu em sua denúncia que a "organização criminosa" não conseguiu alterar o relatório das Forças Armadas. "O grupo conseguiu apenas que a divulgação do documento fosse evasiva quanto à possibilidade de fraudes no processo eleitoral", escreveu Gonet.
A denúncia, que cita Bolsonaro cerca de 200 vezes, traz outros dois trechos mais explícitos sobre a alegação do PGR de que Bolsonaro e outros denunciados sabiam que não houve falhas nas urnas, todas baseadas em depoimentos colhidos durante as investigações, mas sem a apresentação de provas materiais.
Os trechos constam nas páginas 94 e 113 e afirmam que “a organização criminosa sabia da inexistência das falcatruas que divulgavam [sobre possíveis fraudes no processo eleitoral] e sabia disso antes mesmo da finalização do pleito eleitoral” de 2022.
Na sequência o PGR diz em sua denúncia que “a ordem emitida por Jair Messias Bolsonaro [sobre suposta alteração do relatório das Forças Armadas sobre as urnas] torna indubitável o dolo da organização criminosa” e que o “conhecimento da inexistência de fraude eleitoral revela que o objetivo do grupo, ao postergar a divulgação do relatório, era o de propiciar condições políticas para o atentado em curso contra a ordem constitucional”.
Bolsonaro afirmava publicamente, com frequência, que as eleições no Brasil poderiam ter sido fraudadas, questionando a confiabilidade das urnas eletrônicas e sugerindo que poderiam ser manipuladas para prejudicar sua candidatura. Bolsonaro sugeriu que as urnas eram vulneráveis à manipulação e que o sistema eleitoral poderia ser injusto ou tendencioso contra ele, especialmente nas eleições de 2022. O Tribunal Superior Eleitoral diz que o resultado das urnas eleitorais não pode ser manipulado porque procedimentos e ferramentas de segurança. Um dos fatos citados é que as urnas não são conectadas à internet.
Entre as declarações de Bolsonaro que contestavam a segurança das eleições, algumas ganharam destaque nos anos de 2021 e 2022 quando ele afirmou que havia “indícios fortíssimos, ainda em fase de aprofundamento, que nos levam a crer que temos que mudar esse processo” ao se referir às urnas eletrônicas e que a “impressão do voto daria garantia de segurança que falta às urnas eletrônicas”. O ex-presidente chegou a questionar se “as urnas são seguras, por que um hacker teria sido preso por invadir o sistema do TSE” ao se referir a uma ação do hacker Walter Delgatti Neto. O TSE informou na época que a Polícia Federal investigou o caso e não encontrou indícios de fraude nas urnas.
Bolsonaro também questionou o motivo de só o Brasil e poucos países realizam eleições apenas com urnas eletrônicas, sem a impressão posterior do voto e que “não dava para comprovar ou não se houve voto nas eleições” diante destas circunstâncias.
Segundo o PGR Paulo Gonet, o general Freire Gomes, então Comandante do Exército, “asseverou que o presidente da República Jair Bolsonaro tinha plena ciência de que a Comissão de Fiscalização [das urnas eletrônicas] não identificara nenhuma fraude no pleito de 2022” dentro do contexto que havia sido solicitado em forma de relatório às Forças Armadas.
Segundo Gonet, “a organização criminosa iniciou a execução do planejamento traçado, com a sua tentativa incessante de construir a base probatória de fraude eleitoral; vendo-se frustrada nesse tópico, à falta de dados minimamente consistentes que pudessem desacreditar a higidez [saúde] das eleições”.
Bolsonaro foi denunciado por organização criminosa armada, tentativa de golpe de Estado, tentativa violenta de abolição do Estado Democrático de Direito, dano qualificado pela violência, grave ameaça contra patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado. No caso de condenação, que caberá ao STF julgar, as penas máximas somadas pelos supostos crimes chegam a 43 anos de reclusão.
Especialista alerta denúncia é frágil e não se sustenta pela falta de provas
O advogado constitucionalista André Marsiglia afirma que a denúncia da PGR é frágil, não se sustenta e trata da falta de provas que culminem com a incriminação denunciada. “Um mais do mesmo já mastigado pela imprensa à exaustão. Do ponto de vista jurídico, pela fragilidade da denúncia, entendo que a PGR dependerá totalmente das delações e testemunhas. E, claro, da visão política da Corte [do STF] sobre o tema. Na peça da PGR, posts, lives, reuniões e minutas apócrifas foram tratadas como uma forma organizada do grupo desestabilizar o Estado e orquestrar um golpe”, descreve.
O constitucionalista afirma que, “não à toa, tem havido tanta rigidez com os réus do dia 8 [de janeiro de 2023]”. “Acusar a todos de golpistas criou o estofo necessário para relacionar essa denúncia por golpe com o dia 8. A denúncia, a meu ver peca em não individualizar, nem especificar adequadamente a função e a conduta de cada um, pressupondo a liderança de Bolsonaro pelo fato, por exemplo, de estar à frente de reuniões”, descreve o advogado.
Marsiglia também avalia que “posts, lives e bravatas ditas em reuniões foram consideradas como preparação e incitação a golpe, e não como opinião, como deveriam a princípio sempre ser”. “[A denúncia] não esclarece a contento a relação entre o dia 8 [de janeiro] e o grupo, apenas menciona que postagens estimularam os manifestantes. Algo que, se ocorreu, pode muito bem ter ocorrido de forma espontânea não ficando esse último ponto claro, a peça se fragiliza, pois sem ato executório não há como criminalizar a tentativa de golpe”., destaca.
Em nota, a defesa de Jair Bolsonaro disse ter recebido “com estarrecimento e indignação a denúncia da Procuradoria-Geral da República por uma suposta participação num alegado golpe de Estado” e que o presidente “jamais compactuou com qualquer movimento que visasse a desconstrução do Estado Democrático de Direito ou as instituições que o pavimentam”.
“A despeito dos quase dois anos de investigações — período em que foi alvo de exaustivas diligências investigatórias, amplamente suportadas por medidas cautelares de cunho invasivo, contemplando, inclusive, a custódia preventiva de apoiadores próximos —, nenhum elemento que conectasse minimamente o presidente à narrativa construída na denúncia, foi encontrado”, segue a defesa de Bolsonaro.
Os advogados do ex-presidente afirmam que não há qualquer mensagem do ex-presidente que embase a acusação, “apesar de uma verdadeira devassa que foi feita em seus telefones pessoais”. “A inepta denúncia chega ao cúmulo de lhe atribuir participação em planos contraditórios entre si e baseada numa única delação premiada [Mauro Cid], diversas vezes alteradas, por um delator que questiona a sua própria voluntariedade. Não por acaso ele mudou sua versão por inúmeras vezes para construir uma narrativa fantasiosa”.
A defesa diz ainda que Jair Bolsonaro confia na Justiça e acredita que essa denúncia não prevalecerá por sua precariedade, incoerência e ausência de fatos verídicos que a sustentem perante o Judiciário.