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Agressão à separação de Poderes

Recuo parcial de Gilmar não muda proteção ao STF e expõe a interferência no Legislativo

Davi Alcolumbre, Hugo Motta e Gilmar Mendes no Congresso
Alcolumbre sinalizou que sua resposta definitiva à liminar de Gilmar passará pela articulação com líderes partidários para acelerar propostas legislativas já existentes que reforcem as prerrogativas do Senado e do Congresso (Foto: Geraldo Magela / Agência Senado / Arquivo)

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O recuo parcial do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF) - ao suspender nesta quarta-feira (10) um trecho da sua própria decisão monocrática que altera as regras para os pedidos de impeachment de juízes da Corte - foi o resultado da reação negativa que despertou em parlamentares, juristas, setores da sociedade e até entre alguns colegas do STF. Gilmar suspendeu a parte da liminar que dava exclusividade à Procuradoria-Geral da República (PGR) para apresentar pedidos de impeachment contra ministros do STF.

Formalmente, o recuo respondeu a um pedido do Senado por reconsideração, mas também deixou clara a interferência do STF sobre o Legislativo e a articulação entre o presidente da Casa legislativa, Davi Alcolumbre (União-AP), e o próprio Gilmar em torno de mudanças da lei que trata da cassação de ministros, ainda tolhida por ele.  

Em 3 de dezembro, Gilmar concedeu a liminar motivada por ação do partido Solidariedade, quando decidiu - em caráter provisório e efeito imediato - restringir os pedidos de impeachment contra ministros do STF apenas à Procuradoria-Geral da República (PGR) e elevar o quórum necessário no Senado para abrir o processo de afastamento.

Congresso, entidades civis e a opinião pública deflagraram de imediato uma onda de duras críticas à “blindagem aos ministros do STF”, à “usurpação de competência” do Legislativo por parte do Judiciário, à “interferência nas prerrogativas” parlamentares, ao “enfraquecimento dos sistemas de controle”, à “agressão à separação de poderes” e à “decisão flagrantemente em causa própria”.

Uma semana depois, Gilmar devolveu o direito de qualquer cidadão denunciar ministros do STF, mas manteve a exigência do apoio de dois terços (54) dos 81 senadores para a abertura do processo de impeachment e não mais a maioria simples (41), ainda sob o argumento de proteger a independência do Judiciário.

Gilmar também manteve a proibição do afastamento de um ministro na fase intermediária do processo, quando o plenário do Senado aprova a admissibilidade da denúncia.

Pressionado, Gilmar recua parcialmente, mas mantém tutela sobre votação de lei no Congresso

Para o cientista político Ismael Almeida, o recuo de Gilmar ocorreu devido à pressão que o ministro sofreu “de todos os lados”, o que dificultou a possibilidade de levar adiante a decisão original. A expectativa de Gilmar e aliados na Corte era efetivar a medida no plenário virtual já nesta sexta-feira (12), mas a sessão acabou suspensa.

A prova de articulação de Gilmar e Alcolumbre está na justificativa para recuar. Segundo ele, sua liminar ajudou a impulsionar a tramitação do projeto de lei no Senado que atualiza regras do impeachment de autoridades, cabendo então ao Legislativo concluir a discussão. Ele repetiu a tese dita em público após a decisão.

O recuo gerou diferentes avaliações no meio político: para uns, foi resultado da pressão da sociedade em defesa da separação dos Poderes; para outros, representa trunfo do Legislativo em preservar instrumentos de controle sobre o STF. O senador Sergio Moro (União-PR) considerou a mudança “vitória da população”.

Ao praticamente inviabilizar a tramitação de pedidos de impeachment de ministros do STF, Gilmar evidenciou articulações no Senado para mudar regras. Para aliviar a tensão, suspendeu o trecho mais polêmico da liminar, restabelecendo a chance de qualquer cidadão ou parlamentar apresentar pedidos de impeachment ao Senado.

O recuo só ocorreu em meio a debates sobre projeto de lei no Senado para alterar a Lei do Impeachment. Para garantir a negociação nos termos desejados, também foi decidido adiar o julgamento no plenário virtual do STF sobre a liminar, que agora ficará para uma sessão presencial em data a ser definida, possivelmente para 2026.

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Conforme antecipou a reportagem da Gazeta do Povo, após a forte reação à liminar de Gilmar que restringiu drasticamente os pedidos de impeachment de ministros do STF, Alcolumbre e a cúpula do Judiciário passaram a articular abertamente a nova lei de impeachment para responder à controvérsia e atualizar a legislação vigente.

O foco dessa articulação é o projeto de nova Lei do Impeachment (PL 1.388/2023), apresentado pelo ex-presidente do Senado Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e elaborado por juristas sob a coordenação do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, que é ex-integrante da Corte. A proposta busca substituir a Lei 1.079/1950, mas inclui pontos controversos — como a previsão de que ministros do STF não possam ser responsabilizados por suas interpretações da Constituição, o que reproduz posição da liminar de Gilmar.

O projeto estagnou por meses na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), mas agora tende a ganhar impulso diante do atual contexto, com apoio de setores do Judiciário e do Legislativo. Para críticos, a manobra pode blindar ainda mais os magistrados e aprofundar a crise institucional. Para analistas, a liminar de Gilmar visou também colocar o STF dentro das negociações, para conduzir seu desfecho.

Alcolumbre, apesar de criticar a decisão monocrática de Gilmar, tem priorizado articular com líderes partidários o avanço da discussão sobre o projeto de lei existente em vez de apoiar imediatamente propostas de emenda constitucional que restabeleçam integralmente as regras essenciais da Lei do Impeachment.  

Juristas veem na liminar de Gilmar interferência do STF no Legislativo

Juristas ouvidos pela Gazeta do Povo afirmam que a decisão de suspender parcialmente a própria liminar sobre processos de impeachment contra integrantes do STF reforça um padrão de interferência do Judiciário em competências típicas do Legislativo.

Para a doutora em Direito Público Clarisse Andrade, a negociação direta entre o ministro e a cúpula do Senado — que antecedeu o gesto — evidencia um “Supremo político”, capaz de influenciar o conteúdo e o ritmo de projetos que afetam diretamente a Corte. Sua avaliação é de que, ao modular a decisão que havia blindado ministros, Gilmar agiu como “legislador informal”, definindo limites e diretrizes que o próprio Congresso passa a incorporar.

O doutor em Direito pela USP e comentarista político Luiz Augusto Módolo avalia que a decisão representa apenas uma “concessão pontual”, sem alterar o núcleo de proteção que o STF mantém sobre si próprio. Para ele, a suspensão do trecho que restringia exclusivamente à PGR a legitimidade para apresentar pedidos de impeachment contra ministros do Supremo “foi uma concessão magnânima dos ministros esclarecidos”, mas que não muda a essência do problema.

Segundo Módolo, a flexibilização pode ter ocorrido menos por abertura institucional e mais por incômodo de outros integrantes da Corte com o poder concentrado nas mãos de Gilmar. “A questão do legitimado pode ter desagradado outros ministros, justamente porque ampliava demais a influência do próprio Gilmar sobre o processo”, afirma.

Apesar do gesto, ele destaca que o restante da decisão permanece intacto — incluindo o aumento do quórum para abertura de processos no Senado — o que, na prática, mantém os magistrados em posição de forte blindagem. “No fundo, tudo segue igual: o STF continua protegido de qualquer tentativa real de responsabilização”, salienta Módolo.

Tendência é Gilmar buscar incorporar as suas decisões à nova lei de impeachment

O constitucionalista Alessandro Chiarottino acredita que o recuo de Gilmar ao suspender a regra que restringia exclusivamente ao PGR a apresentação de pedidos de impeachment contra ministros do STF faz parte de uma estratégia calculada. Segundo ele, apesar da “flexibilização inicial”, o ponto central da decisão — a exigência de quórum qualificado — continua blindando o STF.

“Na prática, tiraram do Senado o poder de impeachment. O quórum de dois terços é inatingível no atual cenário partidário”, afirmou. Ele avalia que o Senado deve apresentar um projeto prevendo maioria simples, mas isso pode não prosperar. “O STF pode considerar esse quórum inconstitucional, então a disputa continua — e, como quase sempre, com o Supremo tendo a última palavra.”

Para o constitucionalista, o futuro da controvérsia depende da capacidade de reação institucional do Senado. “Se houver uma mobilização verdadeira pelas prerrogativas da Casa, talvez o STF recue. A ver”, segue.

Na esfera prática, a intervenção tem impacto imediato sobre o trabalho do Senado. Segundo Clarisse Andrade, a Casa, pressionada a avançar na atualização da lei do impeachment, agora avalia um texto que segue — em parte — as orientações do ministro.

“A proposta preliminar permite que partidos, OAB, entidades de classe e iniciativas populares com 1,56 milhão de assinaturas apresentem pedidos contra ministros do STF, mas ainda assim representa uma restrição maior do que a legislação atual, que autoriza qualquer cidadão a fazê-lo”, alerta.

Além disso, a exigência de quórum de dois terços para abertura de processos no Senado, mantida por Gilmar, eleva o custo político de qualquer tentativa de responsabilização de magistrados.

“Para parlamentares que já haviam reagido à primeira decisão do ministro, o episódio aprofunda a percepção de perda de autonomia da Casa e inaugura um precedente de negociação permanente entre Supremo e Legislativo sempre que houver tensão institucional”, afirma.

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