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Uma operação da Polícia Federal que investiga o desvio de R$ 1,4 bilhão em emendas parlamentares e convênios para obras públicas causou apreensão entre políticos do União Brasil na última semana. Um dos membros da executiva nacional da legenda, o empresário José Marcos de Moura, conhecido como "Rei do Lixo" por ter vencido contratos de limpeza urbana, está sendo acusado pela PF de ser um dos operadores do suposto esquema de corrupção. Ele chegou a ser preso preventivamente na semana passada, mas foi solto na quinta-feira (19) por decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1).
A defesa de Moura disse à Gazeta do Povo que não comentará o caso e o União Brasil não respondeu às tentativas de contato da reportagem. O espaço segue aberto para manifestações.
A operação Overclean foi deflagrada pela Polícia Federal (PF) em 10 de dezembro nos estados da Bahia, do Tocantins, de São Paulo, de Minas Gerais e de Goiás. Policiais federais se debruçam sobre provas colhidas antes e durante a operação e tentam rastrear R$ 1,4 bilhão em recursos públicos provenientes de emendas parlamentares e convênios para obras públicas nos últimos quatro anos – as provas estão sob sigilo.
A polícia suspeita que esse dinheiro foi usado em contratos e licitações direcionados – ou seja, sem livre concorrência. Investigadores também apuram se houve superfaturamento de obras e serviços e desvios de recursos por meio de lavagem de dinheiro, com envolvimento de servidores públicos.
Em resumo, a polícia disse haver indícios de que emendas parlamentares eram liberadas para municípios parceiros, onde servidores envolvidos no esquema direcionariam licitações para as empresas do grupo, que superfaturariam as obras. O grupo, então, se utilizaria de empresas de fachada e de laranjas para "legalizar" o dinheiro.
A PF classifica o esquema como uma "operação sofisticada", um megaesquema envolvendo uma suposta organização criminosa com fortes articulações em Brasília, muito próxima de líderes do União Brasil e que pode ter ramificações por todo o país.
Durante a operação Overclean foram apreendidos R$ 3,4 milhões em espécie, 23 veículos, três aeronaves, três barcos, seis imóveis e 38 relógios de luxo. Juntos, os bens somariam aproximadamente R$ 162 milhões.
Como iniciaram as investigações e como operava o grupo
As suspeitas surgiram em 2021, quando a Controladoria-Geral da União (CGU) identificou a possibilidade de superfaturamento parcial de mais de R$ 8 milhões nos processos para contratação de obras com o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), na Bahia.
Na época, a CGU estava fazendo auditorias sobre a aplicação de recursos das emendas parlamentares. A partir disso, o órgão encaminhou uma série de documentos suspeitos à Polícia Federal, que iniciou as investigações há cerca de um ano.
O núcleo de apuração é composto por CGU, PF, Ministério Público Federal (MPF) e Receita Federal, e conta com o apoio da Agência Americana de Investigações de Segurança Interna (Homeland Security Investigations - HSI).
Em um dos relatórios, de quase 700 páginas, a PF aponta uma série de evidências para os atos ilegais. São suspeitas de direcionamento de recursos públicos para empresas e pessoas ligadas a administrações municipais conectadas à organização que teriam levado ao superfaturamento em obras e desvios de recursos em diversos casos, “facilitados por interlocutores que manipulavam a liberação de verbas para projetos previamente selecionados”.
Além das suspeitas nos contratos de coleta de lixo e limpeza urbana, as empresas dos investigados e as de fachada teriam, de acordo com a PF, participado de licitações em supostos esquemas fraudulentos para realização de obras de pavimentação, entrega de material escolar a prefeituras e até dedetizações. Entre os exemplos estão obras de pavimentação asfáltica realizadas em municípios pelo interior da Bahia.
“A atuação do grupo era estruturada em operadores centrais e regionais que cooptavam servidores públicos para obter vantagens ilícitas, tanto no direcionamento quanto na execução de contratos. Após a celebração dos contratos fraudulentos, as empresas envolvidas superfaturavam valores e aplicavam sobrepreços, repassando propinas por meio de empresas de fachada ou métodos que ocultavam a origem dos recursos”, descreve a PF.
Em Salvador, onde foram cumpridos parte dos mandados de busca, apreensão e prisão, em 10 de dezembro, o diretor de administração da Secretaria Municipal de Educação, Flavio Henrique Pimenta, foi preso. Ele é suspeito de passar informações privilegiadas para uma das empresas envolvidas no esquema sobre licitações e obras públicas. No mesmo dia da operação, a prefeitura informou a exoneração do servidor. A reportagem não conseguiu contato com a sua defesa.
Atuação em diversos estados e rastreamento de emendas parlamentares
As investigações indicam que a operacionalização do esquema envolvendo a organização teria ocorrido em diversas regiões do Brasil, não apenas na Bahia. Uma planilha apreendida pelos policiais federais, à qual a Gazeta do Povo teve acesso, indica negócios em 12 estados brasileiros, mas há indícios documentais que o grupo agiria em 17 estados.
A planilha apreendida aponta a atuação em municípios de São Paulo (incluindo a capital), Rio de Janeiro (incluindo a capital), Maranhão, Pernambuco, Goiás, Pará, Mato Grosso, Piauí, Paraíba, Amazonas, Tocantins e Amapá.
Quem é o "Rei do Lixo"
A Polícia Federal indica que no centro desse escândalo está José Marcos de Moura, conhecido como Rei do Lixo. O apelido veio depois de suas empresas vencerem vários contratos de licitação em limpeza urbana, sobretudo em municípios da Bahia. Além de ser empresário, ele compõe o quadro de membros da Executiva Nacional do União Brasil, empossada em fevereiro deste ano sob a presidência do advogado Antônio Rueda. Investigadores apontam ainda uma relação próxima de Moura com ACM Neto, vice-presidente do União – embora nenhum político esteja sendo investigado nessa operação.
Para a PF, o Rei do Lixo operacionalizava o esquema de desvio de verbas em obras com recursos de emendas parlamentares em vários estados, além da Bahia, e não somente no setor de limpeza urbana. Contratos investigados associados diretamente a ele somaram cerca de R$ 200 milhões somente neste ano, de um total de R$ 825 milhões em recursos públicos movimentados em 2024 que estão sob escrutínio da PF.
Moura foi preso na Bahia durante a operação de 10 de dezembro. Na tarde de quinta-feira (19) o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) em Brasília concedeu liberdade ao empresário, acatando o pedido de habeas corpus formulado pela defesa por considerar que não há fatos objetivos para a prisão preventiva.
O mesmo TRF determinou também a soltura de outros 10 presos na operação. Cinco pessoas seguem presas e um suspeito está foragido.
A reportagem procurou a defesa de Moura. Um dos advogados que o representa no habeas corpus que o colocou em liberdade, Rodrigo Mudrovitsch, disse por meio de sua assessoria que não pretende, por ora, se pronunciar. Mudrovitsch atuou na defesa de investigados na operação Lava Jato.
Outro advogado, José Eduardo Alckmin, também foi procurado pela reportagem, mas não se manifestou. Ele é primo do vice-presidente, Geraldo Alckmin (PSB), e atua em importantes casos de repercussão nacional e internacional.
ACM Neto, que não está entre os investigados, disse que as apurações policiais não encontraram qualquer diálogo seu nem mesmo citação direta de seu nome. Em nota, afirmou que “existem apenas inferências, que, ainda assim, não estão relacionadas a qualquer ato ilícito".
A Gazeta do Povo procurou o partido, mas não houve pronunciamento até o momento. Políticos com prerrogativa de função – como deputados e senadores – não constam entre os investigados nesta fase da operação.
Assessora de Davi Alcolumbre é citada em investigações
Em meio às apurações, também surgiu o nome da chefe de gabinete do senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), Ana Paula Magalhães. Ela é apontada pela investigação em conversas com suspeitos presos na operação de 10 de dezembro. Os contatos, segundo a PF, teriam como objetivo viabilizar contratos com prefeituras em municípios comandados por aliados políticos ou por filiados ao União Brasil.
A reportagem não conseguiu contato com a chefe de gabinete nem com o senador, apesar das diversas tentativas.
Em uma das interceptações, a PF afirma que Ana Paula agiu para liberar uma emenda de R$ 14 milhões para uma licitação em Juazeiro (BA), mas a concorrência teria de ser direcionada a uma empresa de pavimentações, ligada ao esquema.
Alcolumbre, que não está entre os investigados, é o nome mais cotado para assumir a presidência do Senado em 2025. A PF afirma que não há evidências de envolvimento de políticos no esquema, sendo legítima a destinação de emendas parlamentares.
Outro político que aparece em desdobramento do caso, mas também não consta entre os investigados, é o deputado federal Elmar Nascimento (União-BA), que chegou a ser cotado para concorrer à presidência da Câmara em 2025. Um dos presos na operação em dezembro foi um primo do deputado, o vereador eleito do município de Campo Formoso (BA), Francisco Manoel do Nascimento Neto.
Ele tentou se livrar de R$ 220 mil em espécie jogando uma mochila com o dinheiro pela janela. Neto foi preso pela PF e a mochila com dinheiro, apreendida. A Gazeta do Povo não obteve retorno da assessoria do deputado e não conseguiu contato com a defesa de seu primo. O espaço segue aberto.
Elmar Nascimento é irmão do prefeito do município para o qual teriam sido enviados milhões em emendas parlamentares nos últimos dois anos. A PF apura suspeitas de irregularidades em parte das obras feitas na cidade com esse dinheiro.
PF apreendeu aeronave com R$ 1,5 milhão e documentos
No começo de dezembro, investigadores identificaram uma movimentação atípica de documentos e valores em espécie que pertenceriam ao grupo investigado. Os policiais interceptaram e apreenderam uma aeronave supostamente utilizada no esquema de corrupção. O avião saiu de Salvador com destino a Brasília, carregando R$ 1,5 milhão em espécie e documentos. A PF acredita que os documentos seriam destruídos para eliminar provas.
Um possível acordo de delação premiada entre a Justiça e o Rei do Lixo já está sob a mesa, afirmam à Gazeta do Povo fontes próximas às investigações. Se fechar a colaboração, a PF acredita que ele possa indicar envolvidos diretos no esquema, além de apresentar provas sobre o direcionamento de verbas, definição de obras, superfaturamento e a lavagem de dinheiro.
Em seu primeiro depoimento à PF, em 17 de dezembro, quando ainda estava preso, Moura teria ficado em silêncio e sua defesa recusado, por enquanto, um acordo de colaboração.
Ex-presidente do União critica cúpula do partido
Em entrevista à CNN, o ex-presidente do União Brasil, deputado federal Luciano Bivar, criticou o partido ao qual segue filiado. Disse que a sigla “não tem mais alma, não tem ideal, não tem [mais] nada”.
Bivar foi afastado definitivamente do comando do partido em maio deste ano, em meio a uma série de embates e disputas internas. Ele afirmou na entrevista que o partido é dirigido por um “cara” que não é político, mas alguém que está ali para “fazer negociatas”, ao se referir a Antônio Rueda, que não respondeu publicamente às críticas.
Luciano Bivar também afirmou que integrantes do alto comando estão “diretamente ligados” à suposta organização criminosa e que “a milícia do Rio [de Janeiro] é trombadinha diante dessa organização”.
Apesar de não terem respondido aos questionamentos da Gazeta do Povo, o senador Davi Alcolumbre e o deputado Elmar Nascimento têm negado participação no esquema. Bivar não descarta entrar na Justiça para pedir a destituição da executiva nacional do União Brasil.