Uma das situações de vulnerabilidade social mais complexas no mundo, difícil de se resolver até mesmo em países desenvolvidos, virou alvo de disputa judicial e política na capital paulista. Moradores de rua estão sendo abordados pela zeladoria da prefeitura de São Paulo para retirarem suas barracas dos espaços públicos, de maneira que não impeçam a passagem dos pedestres ou atrapalhem atividades comerciais nos locais. A medida não é novidade e segue as determinações de um decreto de 2020, feito durante a gestão de Bruno Covas, que "dispõe sobre os procedimentos e o tratamento à população em situação de rua durante a realização de ações de zeladoria urbana".
A questão, porém, veio à tona neste início do ano, quando a prefeitura de São Paulo intensificou as remoções das barracas após um período de menos abordagens devido a pandemia da Covid-19. Os agentes da prefeitura, que eram basicamente as equipes de limpeza urbana, voltaram a abordar as pessoas para as remoções das barracas. Em fevereiro, no entanto, o deputado federal Guilherme Boulos (Psol), pré-candidato a prefeito de São Paulo no ano que vem, e o padre Julio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo, conseguiram uma liminar para evitar as ações do poder público municipal por meio de uma ação popular, dando início a uma batalha judicial.
No início de abril, o Tribunal de Justiça de São Paulo derrubou a liminar por meio da decisão de um desembargador que entendeu não haver irregularidades nas ações do município. Dessa maneira, a prefeitura retornou com as remoções. Nesta semana, a oposição, no entanto, por meio da bancada feminista formada por vereadoras do Psol, entrou com uma representação na promotoria de Direitos Humanos do Ministério Público de São Paulo, afirmando que a remoção das barracas tem sido feito de maneira agressiva aos moradores de rua, solicitando também indenização aos que tiveram os pertences recolhidos.
Desde o início da semana, após a repercussão negativa da retirada das barracas, a prefeitura de São Paulo intensificou as equipes que vão às ruas fazer as remoções, integrando-as com ao menos quatro ex-moradores de rua em 15 locais.
Politização da situação dos moradores de rua
Em entrevista à Veja publicada na última terça-feira (11), o prefeito Ricardo Nunes afirmou que é preciso "tratar dos temas com muita tranquilidade, com muita seriedade, sem fazer uso daquela situação que aquelas pessoas estão vivendo naquele momento como aquele rapaz que você citou", disse em referência ao opositor, Boulos. "Eu acho que é equivocada a forma como ele (Boulos) vê as pessoas. Então, ele acha que a pessoa vai ficar naquela situação sem nenhuma dignidade e ele acha que é razoável? Eu não acho", completou.
Apesar do aproveitamento político dos moradores de rua a um ano e meio das eleições municipais, a questão é repleta de complexidade. De acordo com Soninha Francine (Cidadania), secretária municipal de Direitos Humanos e Cidadania, o decreto que estabelece que não é permitido deixar na rua, durante o dia, nada que caracterize ocupação permanente foi construído com bastante envolvimento dos representantes da população de rua. "As pessoas que são contra a população de rua detestam esse decreto, pois o consideram muito permissivo", diz ela, que desde os anos 2000 ocupa cargos públicos na cidade de São Paulo, no Legislativo e no Executivo, tendo passado pelo PT e apoiado o PSDB.
Uma das questões que o decreto estabelece, por exemplo, é que "as equipes de zeladoria urbana deverão respeitar os bens das pessoas em situação de rua", não podendo levar bens pessoais como documentos, medicamentos, receitas médicas, roupas, panelas, fogareiros, instrumentos de trabalho como malabares, entre outros. Ele estabelece também que "poderão ser recolhidos objetos que caracterizem estabelecimento permanente em local público, principalmente quando impedirem a livre circulação de pedestres e veículos, tais como camas, sofás, colchões e barracas montadas ou outros bens duráveis que não se caracterizem como de uso pessoal".
À Gazeta do Povo, Soninha afirma ainda que a desinformação sobre este tema contribuiu para ações erráticas da própria equipe de zeladoria e consequentemente com o aumento de denúncias de violações dos direitos dessa população, estabelecidos no decreto. "Houve uma confusão enorme em relação à própria regra, sobre o que é permitido e não é. A repercussão disso foi tão grande que depois que saiu a notícia que a prefeitura ia tirar as barracas, teve equipe indo para rua achando que era para tirar, chegar e já 'quebrar', mesmo, sem o devido tratamento e respeito", diz ela. "O decreto muitas vezes não necessariamente é cumprido como deveria", complementa.
Nesta semana, a subprefeitura da Sé mandou colocar grades em volta dos canteiros da praça da Sé, região tradicionalmente conhecida por abrigar pessoas em situação de rua, principalmente no período noturno. A praça é um ponto turístico importante da cidade, onde fica a Catedral Metropolitana de São Paulo e o Tribunal de Justiça de São Paulo, porém há anos perdeu a atratividade devido aos problemas sociais na região, como moradores de rua e dependentes químicos.
Criação de vagas não acompanha aumento da população de rua
Robson Mendonça, ex-morador de rua que fundou em 2000 o Movimento Estadual da População de Rua, analisa que a atual gestão da cidade de São Paulo "foi a que mais abriu equipamentos de acolhimento", porém "como qualquer gestão" eles precisariam ser aperfeiçoados. "Às vezes, a pessoa está muito chapada e não pode ser acolhida porque pode causar problema para si mesmo ou para outras pessoas, precisaria de uma estrutura para essas pessoas", diz ele. "Os albergues muitas vezes não têm armários para pertences ou ainda faltam vagas para famílias inteiras", acrescenta.
Em nota, a Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), informou "que possui a maior rede socioassistencial da América Latina, que dispõe de mais de 21 mil vagas de acolhimento para população em situação de rua. Dentre os serviços estão os Centros de Acolhida para População em Situação de Rua, Hotéis, Repúblicas para Adultos, Núcleos de Convivência para Adultos em Situação de Rua, entre outros serviços da rede."
Apesar da inauguração constante de novos equipamentos, eles não acompanham o crescimento da população em situação de rua na capital paulista, que alcançou números recordes e ganhou novos contornos principalmente devido à pandemia da Covid-19. Se antes as pessoas que viviam nessas condições eram na grande maioria enfermos mentais, dependentes químicos ou pessoas que viveram alguma grave ruptura social, agora aumentaram as pessoas que vão para as ruas por não conseguirem conciliar o pagamento do aluguel com a compra do supermercado.
De acordo com o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, feito pela Universidade Federal de Minas com base no Cadastro Único (CadÚnico), o número de pessoas que moram nas ruas da cidade de São Paulo atingiu 52 mil, ante 48,1 mil em 2020 e 44,3 mil em 2019. A análise considera ainda que há uma subnotificação de 35% desses números. Já o Censo 2021, de janeiro de 2022, realizado pela prefeitura de São Paulo, aponta que 31.884 pessoas vivem em situação de rua na capital, ante 24.344 no Censo realizado em 2019.
"A questão é jurídica, política e filosófica. Morar na rua não é uma questão de preferência, existem razões de ordem jurídica, econômica, política, sanitária e moral que nos constrangem a buscar soluções racionais e integradas para esse problema social", analisa Nazaré Lins Barbosa, ex-procuradora geral da Câmara Municipal de São Paulo e professora de filosofia política da Academia Atlântico. Independentemente do número de vagas criadas e a despeito do aproveitamento político desse drama social, o prefeito, seja ele quem for e a qual partido pertencer, tem um grande desafio para enfrentar.
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