O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), no âmbito da chamada “ADPF das favelas”, tem tentado obrigar as polícias do Rio de Janeiro a seguir um plano feito por um grupo de trabalho do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) com ONGs de esquerda com o alegado objetivo de reduzir a letalidade policial.
O Instituto de Segurança Pública (ISP) do RJ, que reúne as polícias do Estado, respondeu aos pedidos do ministro apontando que algumas das exigências são desproporcionais ou indevidas. Reduzir as mortes em operações policiais em 70%, por exemplo, depende mais dos criminosos do que dos policiais, afirmou o órgão, e estipular uma meta nessa linha pode reprimir os agentes no combate ao crime e inibir seu legítimo direito à defesa. Mesmo assim, Fachin se mantém irredutível em seguir esse plano e, por meio de um grupo de trabalho dentro do STF, quer impor ao Estado as medidas feitas pelo CNJ, o que extrapola as funções do Poder Judiciário.
A atuação do ministro fere o pacto federativo previsto na Constituição, que garante aos estados autonomia para formular suas próprias políticas públicas, como as de segurança.
“É função do administrador público, que nesse caso é o governo de Estado, a Secretária de Segurança do Estado, determinar qual é a política de segurança que deva ser seguida. Cabe ao Poder Judiciário, provocado pelo Ministério Público, coibir os abusos onde existirem, mas de modo algum o Judiciário pode traçar uma política pública, como ocorre nesse caso”, explica Alessandro Chiarottino, professor de Direito Constitucional e doutor em Direito pela USP. “O STF não tem essa competência, nem no sentido de competência constitucional, nem no sentido desta capacidade. Não cabe ao tribunal exercer uma atividade que cabe tipicamente ao administrador público.”
No último 7 de dezembro, intimados por Fachin, policiais e representantes do governo do Rio de Janeiro participaram de uma audiência com os advogados do PSB (Partido Socialista Brasileiro), autor da ação (ADPF 635), e o grupo de trabalho do STF. O objetivo era cobrar o Rio de Janeiro sobre o andamento das medidas impostas pelo CNJ.
O encontro, de acordo com o termo de audiência incluído nos autos, foi uma queda de braço entre os dois lados, em que o governo do Rio de Janeiro tentou salvaguardar a sua autonomia federativa. Para os representantes do PSB, há “má-fé” ou resistência por parte do Estado. Para o Estado, além de extrapolar as funções do Judiciário e do CNJ, o grupo de trabalho do Supremo pede medidas que já existem, ou que podem comprometer a segurança pública, ou ainda que estão em desacordo com leis como o Código de Processo Penal, com a tentativa de flexibilização do sigilo de inquérito policial previsto em seu artigo 20.
A saída para essa situação, de acordo com Chiarottino, seria o Rio de Janeiro se manifestar mostrando a inconstitucionalidade das decisões monocráticas de Fachin no processo. “E os parlamentares do Rio de Janeiro também têm um papel importante, assim como o recém-criado Consórcio Sul e Sudeste; não se pode aceitar que a autonomia estadual seja desrespeitada dessa maneira”, afirma.
Fontes ligadas às polícias temem, no entanto, que o governador Cláudio Castro (PL) ceda às pressões do STF, por medo de ações que pesam contra ele e que podem chegar a ser julgadas pelo tribunal. Castro é investigado pela Polícia Federal pela suspeita de envolvimento em um esquema de corrupção que incluiria propina a agentes públicos e desvios em contratos da área de assistência social. Procurado, o estado do Rio de Janeiro não respondeu à Gazeta do Povo sobre as medidas que pretende tomar para defender sua autonomia constitucional.
Especialistas apontam riscos para a segurança pública em plano do CNJ
Além de invadir competência do Rio de Janeiro, as propostas do PSB, do CNJ e do grupo de trabalho do STF devem facilitar a atuação do crime organizado, afirmam especialistas.
A meta de redução de 70% das mortes de civis em operações policiais, por exemplo, foi inspirada no patamar alcançado no estado em 2020, após o STF coibir a atuação dos agentes de segurança pública nas comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia. Nesse período, segundo especialistas, os criminosos aproveitaram para adquirir mais armamentos, construir barricadas e desenvolver suas atuações ilícitas com mais liberdade. É um ponto fora da curva que, para o ISP, não deveria ser usado como parâmetro, também porque depende mais da atuação dos criminosos e não leva em conta o direito do policial à legítima defesa.
“De acordo com as Secretarias, conforme já exposto em suas manifestações anteriores, a meta da Instituição sempre será a busca de 100% de redução da letalidade policial, sendo certo que seus integrantes recebem constante treinamento e capacitação para tal finalidade. Mister, entretanto, ressaltar que mortes por intervenção de agentes do Estado não dependem exclusivamente da conduta destes, mas sobretudo da maneira como possíveis transgressores da lei reagem a abordagens”, afirmou o ISP em documento ao STF.
“A legítima defesa é direito inalienável de todo e qualquer cidadão, sendo certo que policiais respondem a injustas agressões e que eventuais desvios de conduta em tal resposta são sempre apurados com rigor. Forçoso registrar que a legítima defesa, própria ou de terceiros, é instituto que não se pode impor métrica diante do mal injusto, grave e ilícito, atual ou iminente”, continuou o ISP.
Outro ponto preocupante é a quebra de sigilo de operações policiais. O plano em discussão no STF considera todos os mortos nas operações como vítimas inocentes, sem ponderar que nem sempre é assim, já que o policial atua em legítima defesa em confronto com bandidos e é punido quando comete crimes. Mesmo assim, a proposta defende, sem mais explicações, que a defesa dessas vítimas tenha acesso a investigações em curso, o que fere o já citado artigo 20 do Código de Processo Penal e pode atrapalhar a atuação da polícia.
Na opinião do ex-comandante geral da PMERJ e do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) do RJ e analista de Segurança Pública, Mário Sérgio de Brito Duarte, o plano de redução da letalidade policial é uma “forma ideologizada de analisar as questões da Segurança Pública” que parte do princípio de que criminosos são vítimas da sociedade.
“O que essa visão desfocada e ideológica da ação policial e da criminalidade carioca pode fazer é refrear a polícia. O resultado será ainda uma violência maior, desenfreada, conduzindo o Estado a uma completa anomia”, afirma.
Segundo Paulo Storani, ex-capitão do BOPE do RJ, as propostas do CNJ contradizem as boas práticas em segurança.
“Chama a atenção a preocupação exacerbada com a questão da atividade de polícia, mas você não vê a mesma atenção dos nossos juristas, principalmente dos tribunais superiores, com a criminalidade violenta e como decisões vêm sendo tomadas. A legislação brasileira e as decisões jurídicas vêm sendo desenvolvidas para facilitar a vida do criminoso. E quando você mostra essa tolerância é óbvio que você está dando uma sinalização positiva que eles (os bandidos) podem continuar”, afirmou o ex-policial.
Storani frisa que durante a restrição a operações policiais nos morros cariocas na pandemia não houve diminuição da violência. Além disso, a medida desencadeou outros efeitos negativos, como a atração de criminosos de outros estados ao Rio de Janeiro. “O que houve foi a consolidação do poder, com a expansão do território feito por esses criminosos, indo além dos limites da comunidade e adentrando outros bairros dessa comunidade.”
O CNJ, o PSB e o grupo de trabalho do STF também pedem ao Rio de Janeiro medidas de combate ao “racismo estrutural”, com a “democratização da formulação da política interna antirracista” e a “implementação de ações afirmativas nos quadros de alto escalão” dos cargos de alto escalão da segurança pública. E também a criação de uma “comissão independente de supervisão da atividade policial” no Rio de Janeiro, que integraria a estrutura do próprio CNJ – algo que fere totalmente a autonomia do Rio de Janeiro.
O objetivo desse novo órgão seria monitorar, acompanhar e supervisionar a implementação de medidas de redução da letalidade policial — funções já previstas no ordenamento jurídico para órgãos como o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.
Essa comissão, formada por “representantes da sociedade civil”, teria acesso a informações sigilosas sobre operações ou atividades de inteligência. Na formulação da primeira proposta feita pelo CNJ, participaram oito ONGs; seis delas conhecidas por sua defesa de pautas como desencarceramento em massa e legalização das drogas.
* Colaborou Marcone Domingos
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