O Brasil tem uma das legislações ambientais mais avançadas do mundo. A proteção ao meio ambiente é levada a sério em nosso país. Entre as normas referentes ao tema, há um cuidado especial com a vida animal. O artigo 32 da Lei 9.605, chamada Lei de Crimes Ambientais, impõe prisão de até um ano por abuso e maus-tratos a animais silvestres ou domésticos. E o artigo 54 da referida lei estabelece pena de 4 anos de prisão a quem causar poluição em níveis que possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais.
Por outro lado, o anteprojeto de novo Código Civil – aquele mesmo que tem incesto e eutanásia e que está sendo analisado artigo por artigo pelo IBDR – chama a atenção por inserir dois artigos sobre o tema. O artigo 19, que no Código atual garante a proteção legal ao nome artístico, seria deslocado, com nova redação, para um parágrafo do artigo 16, e passaria a tratar da afetividade humana em relação aos animais, declarando que eles compõem o entorno sociofamiliar da pessoa. O anteprojeto prevê também a criação do artigo 91-A, reconhecendo os animais como seres sencientes, ou seja, que são capazes de ter sentimentos de forma consciente.
Nunca é demais lembrar que o atual Código Civil levou quase 30 anos para ser elaborado, enquanto o anteprojeto que estamos discutindo foi criado às pressas por uma comissão de juristas no Senado, em apenas seis meses. A verdade é que há muitas pautas ideológicas nessa iniciativa, que não refletem os valores da sociedade brasileira e, caso sejam aprovadas, iriam na contramão do que se espera de um documento legal que só perde em importância para a Constituição da República. Reforçado este ponto, vamos à análise das propostas de mudança do artigo 19 e criação do artigo 91-A. Comecemos por este:
“Art. 91-A. Os animais são seres vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial.
§ 1.º A proteção jurídica prevista no caput será regulada por lei especial, a qual disporá sobre o tratamento físico e ético adequado aos animais.
§ 2º Até que sobrevenha lei especial, são aplicáveis, subsidiariamente, aos animais as disposições relativas aos bens, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza, considerando a sua sensibilidade.”
Há muitas pautas ideológicas no novo Código Civil, e que não refletem os valores da sociedade brasileira
Quanto à propositura desse novo artigo, não há motivo para contrariedade. De fato, os animais são seres sencientes. Eles sentem dor, carinho, emoções positivas e negativas. Sentem saudades e alegria de estar juntos dos de sua espécie e dos humanos que cuidam deles. Inclusive, temos precedentes dos tribunais superiores reconhecendo que animais têm dignidade própria. Nessa linha, o STJ já garantiu direito de visita a animal após separação.
Em 2021, o STF, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5995, validou dispositivos de lei do estado do Rio de Janeiro que proíbem a utilização de animais para desenvolvimento, experimentos e testes de produtos cosméticos, de higiene pessoal, perfumes e de limpeza. O STF já decidiu também que as leis dos demais entes federativos são legítimas porque estabelecem um patamar de proteção à fauna dentro de suas competências constitucionais suplementares. Trata-se de aplicação de norma constitucional (o artigo 225, parágrafo 1.º, inciso VII, da Constituição) em que, para assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente equilibrado, incumbe ao poder público “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.
A redação proposta vem a aprimorar o artigo 82, que qualifica o animal como bem móvel, suscetível de movimento próprio, em que sua proteção está relacionada aos direitos de seu proprietário. Com a inserção do artigo 91-A, os animais continuariam como objetos de direito, porém tendo sua senciência reconhecida nos casos em que devem ser consideradas sua sensibilidade e consciência.
A proposta do novo artigo 19, porém, gera preocupações, pois pode ser interpretada de maneira a tornar os animais sujeitos de direito. A norma seria inserida no Livro 1 (Das Pessoas), capítulo II (Do Direito das Personalidades), sugerindo que estes compõem o entorno sociofamiliar da pessoa. Assim se propõe a nova redação:
“Art. 19. A afetividade humana também se manifesta por expressões de cuidado e de proteção aos animais que compõem o entorno sociofamiliar da pessoa.”
Apesar de ter se tornado comum hoje a expressão “pais de pet”, referindo-se ao cuidado dos animais de estimação, não podemos equivaler os animais à pessoa humana, nem mesmo chegar ao ponto de torná-los sujeitos de direito dentro da relação familiar ou em quaisquer outros tipos de vínculo social.
Não há dúvida de que a maior parte da população concorda que os animais devem ser cuidados e protegidos. E não se nega a realidade da senciência animal, como sugere a proposta de aprimoramento no artigo 91-A do anteprojeto. Contudo, conferir algum tipo de personalidade jurídica aos animais, ainda que sui generis, é extremamente controverso.
A afirmação de que animais compõem o entorno sociofamiliar pode ser a introdução da ideia de família multi-espécie
Ademais, a nova redação proposta para o artigo 19 do Código Civil apresenta perigos no sentido de dar ensejo a interpretações ambíguas. Além de ser controversa a possibilidade de eventual reconhecimento de status de personalidade jurídica sui generis aos animais, merece atenção a abstração conceitual no que diz respeito ao termo “afetividade”, que poderia vir a fundamentar pedidos de reconhecimento de relação sentimental. Ainda, a afirmação de que animais compõem o entorno sociofamiliar pode ser a introdução da ideia de família multi-espécie.
Na proposta do anteprojeto, a proteção ao nome artístico, hoje assunto do artigo 19, iria para o parágrafo 3.º do artigo 16, com o seguinte texto:
“§ 3.º O pseudônimo, o heterônimo, o nome artístico, as personas, os avatares digitais e outras técnicas de anonimização adotados para atividades lícitas gozam da mesma proteção que se dá ao nome.”
O novo texto sugerido sobre proteção do pseudônimo artístico (e outros) poderia ser aprovado, pois moderniza a legislação, mas devendo permanecer como o artigo 19. A mudança deslocaria uma ordem lógica do assunto, que vem precedido da norma que regula o uso de nome em propagandas comerciais, nos termos do artigo 18, que também não deveria ser deslocado. Fato é que a revisão proposta, além de tentar inserir temas não pacificados e carregados ideologicamente, também possui uma técnica legislativa pobre e confusa.
Desse modo, reitera-se a importância de manter a proteção de nome artístico no artigo 19 do Código Civil. Por outro lado, o reconhecimento da senciência, conforme proposta do artigo 91-A e seus parágrafos, no Livro II (Dos Bens), remetendo a lei especial, é suficiente para regular os casos relacionados aos sentimentos dos animais, e oportunizará o aprofundamento do tema que sua complexidade requer.
Os animais devem ser protegidos, mas em seu devido lugar, como seres sencientes e objetos de direito, bens jurídicos a serem cuidados pelo ser humano. Todavia, eventual afirmação legislativa de afetividade humana para com eles, bem como o reconhecimento de composição sociofamiliar da pessoa, poderia abrir brechas que iriam além do dever de zelo pela dignidade animal, entrando em searas que não refletem os valores da sociedade brasileira.
O IBDR segue empenhado em seu trabalho crítico, conduzido pela comissão especialmente formada para essa análise. Sob a liderança dos autores desta coluna e a coordenação de Silvana Neckel, Warton Hertz de Oliveira, Andressa Bortolin, Gabriel de Almeida e Gianna O. Campos, continuaremos a saga de demonstrar as falhas e incongruências deste anteprojeto. A investigação detalhada dos artigos mencionados nesta coluna foi conduzida pelo Grupo 1 da Comissão, liderado pelo Conselheiro do IBDR Zenóbio Fonseca. O exame minucioso dos artigos citados aqui foi realizado por Maria Fernanda Leite de Freitas Silva e Zenóbio Fonseca, destacados membros do IBDR. O presente texto contou com a participação, em sua elaboração, de Warton Hertz de Oliveira.
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