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O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente do STF, Luís Roberto Barroso,  durante instalação da Comissão Nacional para a Coordenação da Presidência do G20, no Palácio do Planalto.
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, em novembro de 2023.| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

No livro O Espírito das Leis (1748), o filósofo francês Montesquieu, amadurecendo ideias que já haviam aparecido nas obras de Aristóteles e de John Locke, defendeu um dos maiores avanços civilizacionais da história: a separação do Estado em três poderes harmônicos e independentes entre si, consistentes nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. A ideia básica de Montesquieu era a de que não seria sábio concentrar as tarefas de legislar, administrar e julgar nas mãos da mesma pessoa, já que quem detém o poder tende a abusar dele.

Em 2023, quase 300 anos depois, Montesquieu se revirou na cova diante do que aconteceu com a tripartição dos poderes no Brasil. A institucionalidade foi desvirtuada e conceitos consagrados da democracia foram colocados de pernas para o ar, tudo em nome de uma suposta volta à “normalidade democrática”. O exame da relação entre os poderes no Brasil recente é de dar calafrios em qualquer pessoa minimamente preocupada com o país. Compreender esse passado – ainda em grande medida um presente – é essencial para discutirmos o futuro.

Governo e Congresso

A palavra de ordem na relação entre o governo Lula e o Congresso é cooptação por meio do pagamento recorde de emendas bilionárias e distribuição de cargos para parlamentares, que vendem desavergonhadamente seus votos em troca de benesses financeiras. Lula criticou o orçamento secreto, chamado por seu escudeiro Flávio Dino de “maior esquema de corrupção” da história; contudo, adotou práticas similares ou piores, mais secretas: a distribuição de recursos alocados em ministérios em favor de parlamentares por meio de acordos sigilosos.

A institucionalidade foi desvirtuada e conceitos consagrados da democracia foram colocados de pernas para o ar, tudo em nome de uma suposta volta à “normalidade democrática”

Além disso, Lula pagou quase R$ 22 bilhões em emendas a deputados e senadores. O valor foi quatro vezes superior ao montante pago no primeiro ano do governo Bolsonaro e superou em 30% o do último ano. O maior valor pago por Bolsonaro foi de R$ 17,6 bilhões em 2020, ano marcado pela pandemia de Covid-19. Some-se que o valor “empenhado” no governo Lula para parlamentares, isto é, reservado para o pagamento de emendas, o que garante que o dinheiro será enviado para os parlamentares, foi de R$ 34,681 bilhões, mais que o dobro daquele empenhado por Bolsonaro em 2022. Com tanto dinheiro em jogo, muitos pseudoconservadores nem coraram ao se aliar ao governo Lula.

Com esse esforcinho do governo Lula, hoje elogiado como “parte do jogo” pelos mesmos que criticavam e atacavam essas práticas durante o governo Bolsonaro, Lula conseguiu expressivas vitórias no Congresso Nacional com a aprovação do arcabouço fiscal, da reforma tributária, da tributação de fundos exclusivos e de offshores, da MP dos Ministérios, do voto de qualidade do Carf, da MP das apostas on-line, da recriação do Bolsa Família e do programa Minha Casa Minha Vida, da valorização do salário mínimo e de nomes indicados por Lula ao Supremo, como Cristiano Zanin e Flávio Dino. As poucas exceções, propostas rejeitadas ou paralisadas em 2023 como o PL das fake news, confirmam a regra.

Alguém poderia objetar, dizendo: “você é muito idealista, é assim que funciona a política no Brasil. Há mais de década, a governabilidade é comprada, quer na base de emendas e cargos, quer na base da corrupção como aconteceu no mensalão e no petrolão. Quem paga leva. Enquanto eleitores escolherem parlamentares de acordo com sua capacidade de levar recursos para sua região, esse sistema vai se perpetuar”. Entretanto, reconhecer que o sistema funciona de modo doentio não deve nos impedir de lutar por sua saúde. Além disso, a hipertrofia do Executivo com a cooptação do Legislativo se agravou por meio da aliança do governo com o STF.

Governo e STF

A relação entre o governo Lula e o STF foi, entre todas, a mais promíscua e mais obscena, tendo recebido até mesmo o apelido de “lua de mel” por parte de ministros do STF. O Supremo vive desde 2019 um processo claro de agigantamento por meio da canibalização dos demais poderes, que têm suas prerrogativas e atribuições atropeladas e devoradas por um Poder Judiciário cada vez mais faminto por poder e protagonismo. A aliança com o STF permitiu à Presidência derrubar trechos da Lei das Estatais, indicando a companheirada para cargos de comando nas estatais; declarar o marco temporal inconstitucional; pressionar parlamentares; e avançar agendas progressistas.

O sistema político brasileiro, que já foi chamado de “presidencialismo de coalizão” – em que o presidente necessita governar em parceria com a maioria do Congresso – e se converteu em “presidencialismo de cooptação” (com a compra do apoio de grupos fisiológicos do Congresso, que hoje formam o conhecido Centrão), está se transmutando em um presidencialismo judicializador ou da lua de mel com o Judiciário. Nesse novo modelo, o presidente precisa menos do Congresso à medida que ganha o apoio de uma agigantada força política para governar: o Centrão do STF.

O Centrão do STF não é muito difícil de explicar: ele é formado por aqueles ministros (que todos sabem quem são) que se comportam mais como parlamentares ou conselheiros políticos que como juízes. Esses ministros, cuja principal característica é a falta de pudor e de limites, utilizam-se de seu poder judicial para legislar de forma ativista e autoritária, criando políticas públicas, determinando a execução de medidas, interferindo na gestão do orçamento público, perseguindo adversários políticos do governo ou censurando opositores e dissidentes.

O Supremo vive desde 2019 um processo claro de agigantamento por meio da canibalização dos demais poderes, que têm suas prerrogativas e atribuições atropeladas e devoradas por um Poder Judiciário cada vez mais faminto por poder e protagonismo

Esses novos atores políticos do Judiciário interferem com grande poder e influência nos aspectos centrais da vida política do país, como, por exemplo, na aprovação ou rejeição de PECs e projetos de lei e na indicação e nomeação de nomes para órgãos como PGR, TCU ou o próprio STF. Alguns deles estão todos os dias na mídia e na imprensa, dando opiniões ou falando em off sobre todos os assuntos por meio da boca de jornalistas amigos e gargantas de aluguel. Infringem as regras de suspeição, a lei da magistratura e a ética, com absoluta impunidade – afinal, são supremos. Há quem defenda até existir no país uma “juristocracia”, o governo dos juízes, em oposição à “democracia”, o governo do povo.

Nesse contexto, vimos um STF anabolizado, dentre outras coisas: avançar na descriminalização da maconha e do aborto; determinar, de modo ativista, a execução de políticas públicas para pessoas em situação de rua; enforcar, linchar e esmagar os réus do 8 de janeiro a partir de abusos judiciais e lawfare nunca antes vistos; declarar Bolsonaro, o maior adversário eleitoral de Lula, inelegível por meio do braço eleitoral do Supremo, o TSE; caçar agentes da lei que atuaram na Operação Lava Jato a fim de satisfazer uma vingança pessoal de Lula, inclusive por meio da cassação do meu mandato de deputado federal, da anulação das provas do acordo de leniência da Odebrecht, favorecendo mais de 400 políticos enrolados em provas de corrupção, e da suspensão da multa de R$ 10,3 bilhões da J&F, empresa dos irmãos Batista, amigos e aliados de primeira hora do governo Lula.

Você não precisa concordar com tudo que eu disse para concordar que há uma imensa disfunção no exercício do poder pelo STF no nosso país. Falta discrição e ética no comportamento de certos ministros, falta autocontenção no atropelo dos demais poderes, sobra ativismo e invasão de políticas públicas de atribuição do Executivo e do Congresso e sobram abusos judiciais. O STF deveria extrair sua legitimidade da respeitabilidade de ministros que atuam tecnicamente ao aplicar a Constituição e as leis, mas vemos o contrário: ministros-amigos do Rei que se tornaram políticos. Quem poderia conter seus abusos é o Congresso... e como ele tem agido?

A inexistência de freios e contrapesos funcionais permite que senhorinhas presas com um terço e uma Bíblia na mão sejam condenadas a penas maiores que aquelas dos chefes do mensalão

STF e Congresso

É o Congresso que deveria garantir o retorno do Supremo à institucionalidade, protegendo suas atribuições e contendo desmandos de ministros por meio de mudanças constitucionais e legais, por meio de CPIs e por meio de processos de impeachment. É preciso reequilibrar os poderes. O equilíbrio, os freios e contrapesos, existem para proteger não os poderes em si, mas sim os indivíduos e a sociedade contra os abusos e excessos do Estado. A inexistência de freios e contrapesos funcionais permite que senhorinhas presas com um terço e uma Bíblia na mão sejam condenadas a penas maiores que aquelas dos chefes do mensalão.

Contudo, a resposta do Congresso foi tardia e tímida em 2023. No fim do ano, após sucessivos abusos judiciais cometidos não só contra o Poder Legislativo, mas também contra pessoas simples e indefesas, em especial diante da morte de Clezão, na Papuda, sob a responsabilidade do STF, o Senado reagiu com a aprovação da PEC 8/2020, que limita decisões monocráticas dos ministros. A Câmara reagiu também, com o protocolo da CPI do Abuso de Autoridade, que alcançou recentemente as 171 assinaturas necessárias para ser instalada após forte pressão das pessoas sobre deputados para que aderissem à proposta.

O restabelecimento do equilíbrio entre poderes pelo Congresso depende em grande medida dos dois presidentes das casas legislativas, que têm o controle da agenda, isto é, o poder dado por lei e a influência para determinar o que avança e o que é votado ou não. O presidente do Senado já acenou na direção do avanço de outra proposta para limitar abusos do Supremo, que trata da indicação e do mandato dos ministros. Na Câmara, o avanço da PEC 8 e da CPI dependem também do seu presidente, que, entretanto, é um multi-investigado que teve apurações e ações de improbidade estancadas por quem? Pelo ministro Gilmar Mendes, que colocou sigilo sobre as decisões, de modo totalmente atípico. O que se pode esperar dele?

Há solução? Se o Supremo não se autocontiver, o que é improvável neste momento, o caminho passa, como sempre, pela democracia, pela política e pela pressão sobre parlamentares, em especial senadores. Passa também pela mobilização e pressão da sociedade sobre Arthur Lira, particularmente em seus redutos eleitorais, para que ele promova o avanço da PEC 8 e da CPI do Abuso de Autoridade. E se nada disso funcionar? Então, o caminho passará pela eleição de novos parlamentares comprometidos com a contenção de excessos e de abusos do Supremo – gente que não tenha rabo preso, isto é, que não fique, por causa do foro privilegiado, nas mãos dos ministros cujo poder precisa ser contido.

É o caminho – trabalhoso, mas possível, como a experiência já mostrou várias vezes – da conscientização e mobilização. Não há atalhos. Precisamos somar mais e mais gente que parta da indignação para a ação. Foi esse processo que tornou possível as Diretas Já, a Lava Jato e impediu vários retrocessos, como a recente tentativa do governo, com apoio do Supremo, de regular as redes sociais. Esse projeto, aliás, voltará a ser pautado em breve e, a depender do seu conteúdo, poderá impactar a própria capacidade de mobilização social no futuro. Há muito trabalho por fazer e só o tempo dirá se Montesquieu seguirá dando reviradas no caixão diante do que acontece no Brasil, ou se o filósofo francês poderá descansar em paz.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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