Pedro Sánchez é o novo-velho primeiro-ministro da Espanha. O líder do Partido Socialista Operário Espanhol foi reeleito pelo parlamento para o cargo oficialmente chamado de Presidente do Governo da Espanha. Sua reeleição veio graças uma manobra jurídica e política polêmica, a oferta de anistia para os líderes separatistas catalães, o que motivou protestos por toda a Espanha, especialmente um enorme protesto na capital, Madrid. Isso, entretanto, é também consequência do complicado sistema político espanhol.
Falamos das últimas eleições espanholas em julho aqui em nosso espaço. Naquela ocasião explicamos que, apesar de ter ficado em primeiro, o conservador Partido Popular dificilmente levaria os louros para casa, sem conseguir formar um governo. Também naquela ocasião, afirmamos que um dos caminhos possíveis era Sánchez compor uma frente de esquerda via concessões aos catalães. Dito e feito, e essa concessão foi a oferta de anistia.
Sánchez obteve 179 votos, com 171 contrários, na câmara baixa do Parlamento espanhol. Ninguém ousou se abster. Sua base de apoio será composta de sete partidos, embora o governo em si seja formado por apenas dois, o PSOE, que conta com 121 deputados, e o Sumar, bloco de esquerda que substitui o antigo Podemos, com 31 deputados. Apenas esses dois partidos ocupam ministérios, embora seja especulado que um dos vice-primeiro-ministros a ser anunciado seja um “nome de consenso” da base de apoio.
A base é composta por Esquerda Republicana Catalã, Juntos pela Catalunha, o basco Eh Bildu, Partido Nacionalista Basco, Bloco Nacionalista Galego e a Coalizão Canária, totalizando 27 cadeiras. Desses, apenas o Partido Nacionalista Basco e a Coalizão Canária não são de esquerda, embora sejam regionalistas. Na oposição estão o já citado PP, o neofranquista Vox e o União do Povo Navarro. Ou seja, em teoria, trata-se de um frágil governo de minoria, sem a maioria absoluta das cadeiras.
Governo frágil
Se o Partido Nacionalista Basco desaprovar as contas do governo ou entrar em choque com o gabinete Sánchez nos próximos quatro anos, a oposição teria votos suficientes para dissolver o governo, provavelmente resultando em mais uma eleição, que seria a décima desde o ano 2000. Um governo que já começa enfrentando oposição nas ruas, já que o acordo de anistia passa longe de ser uma unanimidade no país. Na verdade, pouquíssimas pessoas fora da Catalunha e do País Basco apoiam o acordo.
Recapitulando brevemente, em 2017 foi realizado um referendo de independência na Catalunha, então sob o governo regional de Carles Puigdemont. O referendo, considerado ilegal pelo Judiciário, resultou em vitória da causa independentista e o próprio Puigdemont declarou a independência da Catalunha, apenas para “suspendê-la” segundos depois, em uma cena que tornou-se chacota nas redes sociais. A suspensão foi, segundo ele, para a possibilidade de uma negociação com Madrid.
Puigdemont e outros líderes foram condenados por sedição e má gestão de dinheiro público, por ter sido gasto para a realização de um referendo ilegal. Alguns foram presos e outros fugiram do país. Puigdemont foi para Bélgica e foi eleito para o Parlamento Europeu, por exemplo. A atual oferta de anistia afetará cerca de quatrocentas pessoas, desde líderes do processo, como o próprio Puigdemont, até pessoas que se envolveram em confrontos nos protestos posteriores, incluindo policiais.
Como mencionamos, poucas pessoas apoiam o acordo. Parte da bancada do PSOE vê o acordo de anistia não como justiça, mas como um “mal necessário” ou o “preço a ser pago”. Dentre os críticos, existem diferentes posições. Desde a dos neofranquistas do Vox, que afirmam que é uma traição e um golpe político, passando por juristas que debatem que é uma interferência na independência dos poderes, até aos que acham que é impunidade pura e simples. Ou, em brasileiríssima expressão, que tudo “acabou em pizza”.
Estado unitário e descentralizado
No último sábado, cerca de 170 mil pessoas protestaram em Madrid, algo como 2,5% de toda a população da zona metropolitana da capital, número expressivo, além de protestos em outras cidades. A origem de todo esse problema, entretanto, reside no fato de que o Estado espanhol é complexo e não está em compasso com o presente. Não se trata especificamente, ou apenas, do modelo monárquico espanhol, mas da própria organização do Estado, um país unitário descentralizado de maneira confusa.
Por séculos, regiões como o País Basco e a Catalunha foram, em regra, mantidos sob controle do Estado espanhol por vias repressivas, como a proibição dos idiomas locais e a intervenção central em instituições como o Judiciário. Apenas em breves momentos houve uma verdadeira autonomia liberal nessas regiões, como na breve Segunda República Espanhola. Não à toa, ela foi derrubada e destruída pelas forças autoritárias e centralizadoras, como os Falangistas e os Carlistas.
Durante a ditadura fascista de Francisco Franco, que durou até 1975, esse modelo de imposição central foi mantido. Após o fim da ditadura, que ditou as próprias regras de sua transição, houve a adoção de um novo modelo formal, um Estado ainda unitário, mas com a construção das Comunidades Autônomas. Foram décadas de constante debate político e pressão europeia para maior autonomia regional, um processo tido como concluído em 1995. Na prática, entretanto, há mais espaço para mais modificações.
A Espanha é formada por dezessete comunidades autônomas, mais duas cidades autônomas. É um Estado unitário de maneira assimétrica, com variações dessa autonomia. Não é uma federação, mas também não é um Estado unitário clássico. Esse processo de construção de autonomias foi dado como concluído em 1995, como mencionado, e, na prática, encerrado no início dos anos 2000. Além disso, existe a possibilidade de poderes “devolvidos” serem retirados.
Federação
O processo de “autonomia”, embora muito significativo perante o passado espanhol, significa que todas as suas autoridades internas e divisões administrativas são meras delegações da autoridade central. Além disso, há um protagonismo da identidade castelhana, tida como sinônimo de identidade espanhola, quando a Espanha é, na verdade, composta de diversas nações. As quedas de braço entre movimentos regionais e o poder central não são apenas por queixas históricas, mas também por assimetrias atuais.
O Estado unitário descentralizado espanhol cria uma colcha de retalhos fiscal, política, cultural e econômica. No lugar dessa colcha de retalhos, seria muito mais prático e plural a adoção de um modelo federal. Diversos países são unitários, mas, à exceção dos territorialmente diminutos, quase todos passam por disputas internas de autonomia. É o caso da Itália, com disputas fiscais internas, do Reino Unido, com a independência da Escócia, da Indonésia com a questão dos papuásios, dentre outros.
Na Europa ocidental, o contraste com a estabilidade política da Alemanha, uma república federal, é cristalino, mesmo sendo a Alemanha um dos mais recentes Estados formados na região. Claro que o federalismo não é uma panaceia, um antídoto para todos os problemas, mas é uma evolução quase que natural do atual modelo espanhol, que foi um avanço quarenta anos atrás. Hoje, não é mais. Além disso, o modelo federal não é contraditório com a monarquia, como são os casos da Bélgica e da Malásia.
A anistia aos líderes separatistas catalães é extremamente problemática, sim, não é possível negar isso. A questão é que, em um sistema político realmente plural, essa crise talvez sequer teria existido. O apoio ao separatismo ainda existiria, mas sem a mesma força. Uma Espanha federal, que reconheça seu caráter de várias nações e de vários idiomas, que garanta os direitos e autonomias internas igualmente, poderia ser a solução para essas diversas crises regionalistas e políticas.
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