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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Aborto

A impecável racionalidade de Luís Roberto Barroso

ADPF 442 barroso Aborto
Luís Roberto Barroso, que deixou o cargo de ministro do STF no dia 17. (Foto: Antonio Augusto/STF)

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Em meu livro Contra o Aborto, demonstrei que não se pode discutir esse tema sem colocar o nascituro no centro da questão. O que se vê com o voto do ministro Luís Roberto Barroso na ADPF 442 é a confirmação desse desaparecimento. O drama humano foi convertido em problema administrativo com toda a tecnicidade jurídica. O aborto, que sempre expôs a fronteira mais delicada entre a vida e o poder, é reduzido a planilha, protocolo e relatório. O embrião se apagou. No lugar dele, surgem expressões de limpeza técnica: “interrupção da gestação”, “questão de saúde pública”, “redução de riscos”.

A forma do voto já revela sua natureza: uma sessão virtual extraordinária, convocada às vésperas da aposentadoria. A decisão mais grave sobre a vida humana entra na pauta como despacho burocrático. O voto, breve e polido, é a imagem da racionalidade moderna em seu estágio mais avançado: limpa, eficiente, asséptica. Além de magistrado, Barroso é a personificação da lógica administrativa aplicada ao que há de mais decisivo na condição humana.

Sua linguagem é a do administrador. Em todo seu protagonismo de juiz da suprema corte, o aborto aparece como problema de eficiência, desigualdade social, custo-benefício, alinhamento com “democracias desenvolvidas”. Tudo soa neutro, científico, inevitável. O embrião está ali de passagem, quase um detalhe. Uma nota de rodapé. A mulher leva alguma vantagem quanto reduzida a vítima de um “infortúnio”. O Estado, por sua vez, é apresentado como gestor benevolente de um problema sanitário.

No voto de Barroso, o aborto aparece como problema de eficiência, desigualdade social, custo-benefício. Tudo soa neutro, científico, inevitável. O embrião está ali de passagem, quase um detalhe. Uma nota de rodapé

A pergunta central – que vida é essa que se interrompe? – desaparece. Já escrevi que qualquer discurso que ignore essa pergunta se torna imediatamente a favor do aborto, mesmo quando se apresenta como técnico.

Recorro aqui a Max Weber por descrever o traço mais perturbador da modernidade: a burocratização da vida. A razão moderna organiza-se por meio de técnicas, não de fins; por normas funcionais, não por verdades. Nesse horizonte, a tragédia não é enfrentada, é administrada. A racionalidade instrumental mede o mundo pela eficiência e, nesse processo, não se pergunta pelo sentido da maternidade ou da gestação. Barroso não ignora esse ocultamento. Ele o reproduz, com calma, convicção e naturalidade.

O voto é impecavelmente racional nesse sentido. Não nega explicitamente a vida do embrião, o que seria brutal. Faz algo pior: ignora-o. A neutralidade burocrática é o novo nome da omissão. E quando o Estado decide sobre a vida segundo esse critério, a maternidade se degrada em serviço público. A mãe e o filho, que deveriam estar unidos numa relação de cuidado, tornam-se variáveis de uma equação milimetricamente calculada.

Na perspectiva personalista que defendo, a pessoa jamais pode ser reduzida a conceito abstrato nem produto de cálculo utilitário. É fundamento relacional. Toda vida humana é a experiência de alguém; desde o início, expressão de uma relação. A maternidade não é poder, mas cuidado. Quando o Estado a transforma em objeto de protocolo, já não protege a mulher nem o filho. Administra riscos financeiros. Uma sociedade que autoriza eliminar os mais frágeis dos mais frágeis em nome da autonomia inaugura uma nova forma de poder: o poder administrativo da vida. Não é a biopolítica do cuidado nem a necropolítica da guerra. É a tecnocracia da existência – uma gestão que transforma o mistério da vida em objeto de cálculo, reduzindo maternidade a um “problema de saúde pública”, ou seja, gerenciamento técnico do Estado.

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Não se trata de demonizar o ministro. Barroso não é um carrasco do imaginário criminal medieval. É pior: é o funcionário perfeito da modernidade. O que mais assusta em seu voto não é a crueldade, mas a indiferença. Nenhuma frase soa violenta; todas soam razoáveis. O resultado, contudo, é devastador. O embrião não fala, não vota, não comparece – porém, é ele quem sofre a consequência irreversível da decisão. A neutralidade que se apresenta como progresso é, no fundo, anestesia da consciência.

Para não dizer que falo apenas como católico, recorro a Habermas. Em sua ética do discurso, a justiça exige que os afetados estejam incluídos, mesmo quando não têm voz. Esse é o princípio mínimo em contextos morais complexos. O Estado não precisa criminalizar a mulher que decidiu abortar. Porém, o Estado deve proteger a vida que não pode se defender. Essa é a medida mínima de uma democracia humanista. Ela deve incluir a vida mesmo em suas extremas expressões.

O voto de Barroso, ao adotar a linguagem da eficiência, abdica de sua principal responsabilidade: garantir que ninguém seja excluído da comunidade moral.

Há aqui um sintoma do que já escrevi em outras ocasiões: a modernidade cumpriu sua promessa de eliminar o sofrimento, eliminando quem sofre. Decidimos o que é humano por relatórios, tratamos a compaixão como política pública, publicamos sentenças limpas, sem vestígio de dor e consciência. O aborto tornou-se símbolo desse processo: um ato limpo, eficiente, sem sujeito. O ministro apresenta isso como avanço civilizatório, quando na verdade é apenas a imagem madura de uma civilização caminha serenamente em direção ao precipício.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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