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Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho é teólogo público e cientista da religião, com foco na articulação entre cristianismo e cultura contemporânea. É Pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte e diretor de L’Abri Fellowship Brasil. Foi diretor de Promoção e Educação em Direitos Humanos no Governo Federal.

Liberdade religiosa

A evangelização de presidiários pode ser proibida

(Foto: Pexels)

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Há tempos os brasileiros têm testemunhado o uso da linguagem dos direitos humanos para dissimular a destruição de liberdades fundamentais. E nessa semana fomos brindados pelo Conselho Nacional de Política Criminal, com uma verdadeira pérola de dissimulação: a sugestão de proibir o evangelismo no sistema prisional, em nome da “liberdade religiosa”.

Na última segunda-feira, 29, foi publicada no Diário Oficial da União a Resolução nº 34 de 24/04/2024 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), ligado ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública, que “define diretrizes e recomendações referentes à assistência socioespiritual e à liberdade religiosa das pessoas privadas de liberdade.”

O documento começa com os “considerandos”, como é de praxe, mencionando 13 fundamentos do sistema internacional de direitos humanos e da legislação brasileira, para em seguida usar os 13 itens de um modo que contradiz o próprio espírito das liberdades fundamentais. Pois no capítulo I, e logo no seu primeiro artigo, o texto reza no inciso 2: “será assegurada a atuação de diferentes grupos religiosos em igualdade de condições, majoritárias ou minoritárias, vedado o proselitismo religioso e qualquer forma de discriminação, de estigmatização e de racismo religioso.”

Com isso, o CNPCP recomenda – já que a resolução não tem força de lei, podendo ou não ser acatada pelo governo – a evangelização de pessoas privadas de liberdade. Na capa, trata-se de proteção dos “direitos fundamentais de liberdade de consciência, crença e de expressão”, mas na prática pretende-se uma negação frontal e hipócrita dessas liberdades.

O proselitismo religioso é parte intrínseca da liberdade religiosa

O direito ao proselitismo religioso resulta das liberdades fundamentais de expressão e de religião ou crença. Consideremos os artigos 12.1 e 13.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário:

12.1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado.

13.1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha.

Grosso modo, o proselitismo religioso nada mais é do que a difusão da própria religião, e a persuasão de outras pessoas, por meio de divulgação individual e coletiva, tanto em público como em privado, a respeito de certas crenças e práticas religiosas. Nesse sentido, o direito ao proselitismo religioso emerge da liberdade religiosa.

Mas há, além disso, uma razão lógica pela qual a liberdade religiosa implica o direito ao proselitismo. A liberdade religiosa tem duas partes essenciais: o direito de praticar a própria religião ou crença, e o direito de mudar de religião ou crença. No entanto, o exercício de qualquer liberdade fundamental depende de uma estrutura social.

O direito ao devido processo legal, por exemplo, depende da existência de um sistema judiciário aberto e justo. Os direitos políticos dependem da liberdade de associação e propaganda política. O direito ao consumo depende do livre-mercado. A liberdade de religião ou crença, similarmente, depende de um mercado de crenças aberto, no qual os méritos e deméritos de cada opinião religiosa ou irreligiosa sejam livre e publicamente examinados, e a propaganda religiosa possa ser exercida livremente.

O “proselitismo” nada mais é do que uma função das liberdades de expressão, de religião e de crença. É o esforço de persuasão, que procura exortar concidadãos a mudarem seus caminhos éticos, políticos, filosóficos ou religiosos em favor de uma visão de mundo e da vida.

O livre exame, discussão e divulgação de ideias morais e religiosas é o que cria, efetivamente, uma situação de liberdade religiosa, na qual o direito de mudar de religião deixa de ser uma possibilidade abstrata para se tornar uma possibilidade concreta, na qual as opções chegam ao indivíduo.

A Resolução 34 é contraditória

Afirmar a liberdade religiosa e vedar o proselitismo seria como autorizar o direito de ir e vir, mas proibir a distribuição de mapas e impedir que os serviços de transporte se comuniquem com os passageiros.

Você é livre para ir aonde quiser, mas terá de se virar para descobrir como – uma situação absolutamente ridícula. Ou, para traçar paralelos mais diretos: proibir o proselitismo religioso equivaleria a proibir a propaganda política, no campo político; ou proibir a publicidade e a própria existência de vendedores profissionais, no campo do mercado; ou proibir a divulgação de metodologias pedagógicas, no campo da educação. É uma proibição imaginável apenas em mentes totalitárias.

Alguém pode alegar, naturalmente, que o propósito de tais esdrúxulas regulações seria garantir a diversidade religiosa e a igualdade entre as religiões. Mas a questão é que as religiões não são iguais. Algumas exigem mais das pessoas; outras exigem menos. Algumas são tradicionalistas; outras são modernizantes. Algumas têm caráter étnico; outras são universalistas. Algumas têm mensagens de reconciliação e perdão; outras não empregam essas categorias.

Não cabe ao Estado se pronunciar sobre a igualdade ou desigualdade das religiões. Cabe ao Estado tratar todas as pessoas igualmente

Quanto às religiões, trata-se de um julgamento que pertence rigorosamente à consciência individual e à comunidade civil. O Estado não tem o direito de garantir que as diversas religiões tenham igual importância em uma sociedade. Isso, sim, seria uma violação da laicidade do Estado.

O que o CNPCP quer proibir?

A motivação mais profunda desta recomendação hipócrita do CNPCP emerge sutilmente em algumas partes do documento, mas já se mostra no supracitado Artigo 1º, inciso II, do Capítulo I, onde encontramos o proselitismo sendo reprovado juntamente com o “racismo religioso”.

Trata-se de um conhecido expediente: vedar a crítica aberta às crenças e regras morais das religiões de matriz africana, sob a alegação de que essa crítica seria um “racismo religioso”. Ora, se uma religião de matriz africana é desprezada por ser praticada por um negro, isso poderia ser chamado de racismo religioso. Mas se essa mesma religião é rejeitada por ser incompatível com outra religião, ou por ser considerada moralmente pobre, ou espiritualmente pobre, isso não seria racismo religioso. Do contrário, todo e qualquer ateu seria automaticamente um racista religioso, o que seria uma absurdidade manifesta.

A associação do proselitismo religioso com a “discriminação”, “estigmatização” ou “racismo religioso” torna patente a sua preocupação de fundo: a crítica ao sagrado do outro.

A solução proposta pelo CNPCP, no entanto, convenientemente, mata dois coelhos com uma cajadada só: impede os casos efetivos de “racismo religioso” e, ao mesmo tempo, bloqueia a expansão da crença evangélica nos ambientes prisionais, visto como problema para muitos agentes públicos de persuasão laicista, para os quais a sociedade seria muito melhor tendo menos religião. Trata-se de uma solução inaceitável.

A crítica do sagrado é necessária

De fato, o proselitismo religioso sempre envolve crítica e louvor, afirmação e negação, como qualquer proselitismo. O proselitismo político, por exemplo, procurará expor as falhas da ideologia concorrente e persuadir o ouvinte da superioridade de certa proposta política. É o que a esquerda e a direita fazem insistentemente nas redes sociais, por exemplo. No caso do proselitismo religioso, temos a afirmação do sagrado e negação do falso sagrado – um elemento afirmativo da religião ou crença proposta pelo pregador, e um elemento ofensivo, de negação da prática religiosa de sua audiência, seja ela da mesma religião do pregador ou de outra religião. Esses elementos são parte intrínseca do dinamismo da religião e são indispensáveis à liberdade religiosa.

Na tradição judaico-cristã, esses elementos remontam à própria origem da comunidade eleita, com o anúncio do nome de Yahweh entre hebreus e egípcios, e negação dos deuses do Egito, que legitimavam seu sistema escravocrata.

Essa dimensão crítica prossegue na tradição profética preservada na Bíblia Hebraica ou Antigo Testamento, no qual encontramos profetas como Isaías e Jeremias atacando a religiosidade idólatra de seus concidadãos e convocando-os à conversão religiosa. Mais tarde testemunhamos o próprio Jesus Cristo e seus apóstolos praticando o que poderíamos descrever, formalmente como “proselitismo religioso”, e sua prática envolvia julgamentos críticos explícitos sobre a religiosidade e sobre a qualidade moral de seus contemporâneos.

Jesus não hesitou em questionar o sagrado de seus oponentes e até de seus próprios seguidores, e chegou a dizer a um deles (Pedro, para os católicos, o maior líder da igreja primitiva): “Arreda, Satanás”!

O elemento de crítica pública do sagrado não é apenas um elemento intrínseco da tradição judaico-cristã e do cristianismo, mas cumpre, além disso, uma função moral e social mais ampla. Essa possibilidade é justamente o que impede que uma religião específica se torne absolutamente hegemônica e indiscutível, e também o que permite processos de renovação e reforma dentro de uma tradição religiosa.

Sem os profetas bíblicos, os hebreus jamais compreenderiam que o culto a Deus era incompatível com a injustiça social. Sem a reforma protestante, o romanismo não teria descoberto com facilidade o problema da consciência religiosa. Sem a oposição dos cristãos confessantes, e a declaração de Barmen, a consciência da maioria protestante que apoiou Hitler passaria sem objeção. A crítica aberta ao sagrado é indispensável para a saúde da sociedade e da própria religião.

Finalmente, há expressões religiosas que merecem exposição e crítica pública mais ampla. Consideremos, por exemplo, a crítica ao fundamentalismo religioso, sempre presente nas mentes e bocas dos jornalistas brasileiros. A crítica ao fundamentalismo supõe uma visão normativa sobre a função da religião na sociedade, e sobre o que seria uma patologia da religião. O wahabismo islâmico, que defende o uso da violência para impor a lei islâmica, por exemplo, é considerado patológico em todas as sociedades liberais. E o que seria um esforço de jornalistas, educadores, intelectuais e agentes públicos, comprometidos com o liberalismo ou o progressismo laico, de educar cidadãos evangélicos sobre os perigos do fundamentalismo religioso, e atraí-los para seus ideais de laicidade, senão uma forma muito nítida de proselitismo de crenças?

A Resolução 34 é retrógrada

Esse é um problema muito grave do dialeto liberal de direitos humanos: formulações de direitos individuais que, na prática, destroem o fundamento desses direitos, por uma insensibilidade ao seu contexto social de realização. São defesas “burras”, por assim dizer, dos direitos humanos. Ou, talvez, pior do que burras: hipócritas.

Consideremos o caso em tela: o sistema internacional de DH estabeleceu, ao longo de mais de uma década de debates, que a preservação da dignidade da pessoa religiosa e a proibição de sua discriminação ou estigmatização, não se estendem a seu sistema de crenças.

Esse debate se desenvolveu por conta do desejo de vários países islâmicos de emplacar “leis antiblasfêmia”, que proibiriam a crítica contra crenças religiosas de outrem. Com base nesse tipo de legislação, por exemplo, um escritor como Salman Rushdie seria condenado por sua obra “Versos Satânicos” (1988), por ofensa ao Islã. Mas o Conselho de Direitos Humanos da ONU rejeitou esse caminho, como expliquei detalhadamente em um artigo no Observatório Evangélico. Pessoas e comunidades de religião ou crença gozam de plena proteção, mas doutrinas religiosas não têm esse direito.

A resolução 34 ignora toda essa legislação internacional e o próprio espírito do debate sobre liberdade religiosa. O diálogo inter-religioso, tema preferido de gestores laicistas, não gera contenciosos judiciais, e nunca foi um problema na legislação sobre liberdade religiosa.

O que gera contendas jurídicas é precisamente a crítica aberta à religião, e essa crítica é o que confere especificidade ao proselitismo religioso. E para proibir essa crítica, o CNPCP quer vedar o proselitismo.

Não cabe, entretanto, desatar o “nó górdio” da discriminação contra pessoas de religião de matriz africana com a “solução”, como fez Alexandre o Grande, de passar-lhe o facão – no caso, proibindo a evangelização cristã e criando um perigosíssimo precedente institucional.

A sociedade e o Ministério da Justiça precisam compreender que a resolução nº 34 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária é hipócrita e retrógrada, porque levanta treze “considerandos” alegando proteger a liberdade religiosa, com o propósito patente de negar e reduzir a liberdade religiosa. A mais pura e acabada dissimulação.

Tendo em vista que a liberdade religiosa é, histórica e logicamente, a primeira das liberdades civis, a resolução do CNPCP deve ser vista como o ovo da serpente. Se não for contida, poderá se espalhar para outros setores da administração pública e tornar-se uma ameaça à democracia.

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Correção

A versão inicial do texto dava a entender que o conteúdo da Resolução 34 é impositivo. No entanto, trata-se de recomendação que o governo federal pode ou não acatar.

Corrigido em 13/05/2024 às 17:35

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