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Jocelaine Santos

Jocelaine Santos

Liberdade de expressão é condição necessária para a democracia

Otimismo?

Luís Roberto Barroso, o ministro que adora contos de fadas sobre democracia

Presidente do STF, Luís Roberto Barroso. (Foto: Antonio Augusto/STF)

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Lembro-me da primeira vez em que li Cândido ou O Otimismo, de Voltaire, na sétima série do Colégio Estadual José Elias da Rocha. Não, não foi obrigação, antes que alguém pergunte. Na época, estava mesmo encantada com o Iluminismo francês, especialmente com Voltaire e seu sarcástico humor. Coisas da juventude. O livro, para quem não conhece (e recomendo a leitura), conta a história de um jovem chamado Cândido que passa por pitorescas aventuras, cada vez mais horrendas, mas que as enfrenta – ao menos até boa parte do livro – com otimismo, afirmando que vivemos no melhor dos mundos possíveis e que tudo está bem, satirizando as ideias do filósofo Leibniz. Não sei muito bem por quê, mas o livro me veio à memória ao ler a cartinha escrita pelo ministro supremo Luís Roberto Barroso em suposta resposta a Donald Trump, que anunciou uma taxação absurda de 50% ao Brasil e mencionou decisões abusivas do STF contra a liberdade de expressão e os direitos constitucionais, num clima de caça às bruxas.

O ministro, por óbvio, se melindrou por alguém ter tido a pachorra de questionar os inestimáveis serviços do Supremo Poder em defesa da democracia brasileira. Se fosse um alguém qualquer, talvez o ministro respondesse da mesma forma como já fez em outras ocasiões: chamando o interlocutor de ignorante, inculto, incivilizado, incapaz de reconhecer a virtuosíssima virtude do STF e suas ações dos últimos anos para empurrar o Brasil na direção certa. Mas Trump não é um Zé-Ninguém qualquer: é o presidente da maior economia do mundo. Melhor responder de forma “civilizada”.

Mesmo sendo cantado em verso e prosa por muitos, incluindo os próprios ministros – que podem genuinamente acreditar nele –, o mito do empenho heroico do STF contra os malvados inimigos da democracia não passa disso: um mito

Num tom de professor de jardim de infância contando história da carochinha, Barroso tenta explicar que Trump foi “enganado”, que suas críticas ao STF foram baseadas em uma “compreensão imprecisa dos fatos ocorridos no país”, e que o Supremo – oh, esse incompreendido! – só faz tudo o que faz em nome da defesa intransigente da democracia, sempre observando “estritamente o devido processo legal, com absoluta transparência”. Nessa parte, algumas centenas de processados pelo STF devem ter rido. De nervoso.

Chamando de “fatos” a sua versão da história, e alertando que ninguém tem “o direito de torcer a verdade ou negar fatos concretos que todos viram e viveram”, Barroso viaja ainda mais longe, dizendo que “no Brasil de hoje, não se persegue ninguém. Realiza-se a justiça”; ou ainda que o “STF tem protegido firmemente o direito à livre expressão”. Para mais pérolas barrosísticas, recomendo a leitura da cartinha na íntegra.

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Ainda que muitos brasileiros não tenham se dado conta até agora do que anda acontecendo por aqui, no estrangeiro as arbitrariedades cometidas no Brasil em nome da tal “defesa da democracia” começam a repercutir. Recentemente, o Wall Street Journal classificou como "alarmante" a deterioração das normas democráticas no Brasil. Trump não é o único – e esperemos que não seja o último – a alertar sobre isso.

Que a democracia no Brasil ande nas últimas – ou tenha acabado mesmo, como alertou a Gazeta do Povo – não é segredo para quem é minimamente informado. Quem se recusa a ver isso ou está deliberadamente escolhendo não ver – seja lá por quais motivos – ou está muito, mas muito enganado, quiçá enfeitiçado pela lorota de que estamos no melhor dos mundos possíveis, e se tornou, ao menos por ora, incapaz de reconhecer o que está diante do seu nariz.

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Mesmo sendo cantado em verso e prosa por muitos, incluindo os próprios ministros – que podem genuinamente acreditar nele –, o mito do empenho heroico do STF contra os malvados inimigos da democracia não passa disso: um mito. Um conto de fadas enviesado, em que os cavaleiros reluzentes de capa preta matam terríveis dragões golpistas que cospem críticas virulentas.

Já passou da hora de admitirmos: o Brasil de hoje não é nem de longe o melhor dos mundos possíveis. Como diria Cândido, exausto com os próprios infortúnios: “Nós precisamos cultivar nosso jardim”. Se queremos democracia, liberdade, prosperidade precisaram construí-las com as nossas próprias mãos. A alternativa é cruzar os braços – e aceitar os contos de fada do ministro Barroso como realidade.

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