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“Consenso Inc. – O monopólio da verdade e a indústria da obediência”, de Paula Schmitt, é, disparado, o melhor livro que li em 2023. Em meio a tantos colegas que envergonham a profissão, Paula é uma das raras jornalistas que ainda fazem jornalismo independente e sério – aquele que sempre desagrada muita gente.
O livro reúne dezenas de artigos que se complementam e articulam em um quebra-cabeça assustador. É o panorama de um país e de uma época que lembram um filme de horror em câmera lenta. Será leitura obrigatória para as gerações futuras que quiserem entender o Brasil e o mundo de hoje.
Os artigos foram divididos em oito blocos temáticos, além de uma introdução (“A era da manipulação e os ataques de falsa bandeira”).
Em “Capital”, Paula mostra como o “sociocapitalismo” criou uma distopia na qual o principal papel do governo é funcionar como atravessador do grande capital, cabendo ao pagador de impostos o dever de financiar a festa – caladinho, porque em tempos de democracia relativa manifestar indignação pode ser um crime mais hediondo do que homicídio doloso e tráfico de drogas:
“Quem observa a realidade com alguma perspicácia já notou que estamos vivendo o pior de dois mundos, uma espécie de capitalismo de Estado, ou socialismo capitalista. (...) o governo agindo como atravessador, coletando impostos de todos os cidadãos, e direcionando a fortuna amealhada para a compra de um único produto adquirido de meia dúzia de comparsas. Isso é a essência do sociocapitalismo – aquele que finge estar beneficiando a população para o lucro de uma minoria cada vez menor. (...) Esse sistema que tira de muitos para dar a uns poucos é um assalto a mão desarmada sancionado pelo Estado e apoiado pela mídia que se sustenta desse governo-atravessador”.
Você não perdeu nenhum direito. Mas se tiver a ousadia de querer exercer determinados direitos, arque com as consequências
Consenso Inc., aliás, é definido pela autora como o cartel – informal mas extremamente coeso – entre governos, bancos, mídia e grandes monopólios. Este cartel subverte a percepção da realidade e cria na mente das massas manipuladas e dos inocentes úteis um mundo artificial, rigidamente controlado e extremamente lucrativo. Matrix perde.
Na seção “Redes sociais”, a autora investiga como a internet, longe de ser o espaço democrático que prometia, se transformou em um gigantesco e sofisticado mecanismo de controle e manipulação, a serviço de um projeto hegemônico de poder.
“A história do mundo tem uma constante: a criação de ferramentas para o controle da maioria por uma minoria cada vez menor e mais poderosa. (...) Esse, aliás, é outro anacronismo que precisa ser corrigido urgentemente: a crença de que a esquerda combate o capital e a direita combate o governo, quando todos sabemos que capital e governo vêm dormindo na mesma cama há décadas e são cada vez mais inseparáveis”.
Já a seção “Política e Justiça” reúne artigos que alertam para a normalização da perseguição desonesta da dissidência, crescentemente desqualificada e criminalizada pelos donos do poder.
“Eu também acho que o Brasil corre sérios riscos de receber o fascismo com os braços abertos (algemados nas costas), mas essa ameaça não vem do vilão da história em quadrinhos que hoje se faz passar por jornalismo. Ele vem do mocinho. ‘Se você não quer tomar vacina, é um direito seu. mas você também não vai poder participar de nada com a gente. Você não pode visitar parentes, você não pode visitar sua mãe, você não pode receber seu filho, você não pode receber seu neto, as suas crianças não podem ir para a escola’. Quem fez essa ameaça foi...” [Pesquisem no Google]
Na verdade, é esta a lógica que prevalece na nova democracia relativa do país imaginário de Banânia (já que não estou falando do Brasil). Exemplos que seriam impensáveis não muito tempo atrás:
- Se você quer se manifestar nas ruas, é um direito seu. Mas, se acontecer algum quebra-quebra, você pode ficar preso por 11 meses e morrer na cadeia sem julgamento, ou ser condenado a 17 anos de prisão, por terrorismo (dependendo de que lado você estiver, claro: se estiver do lado certo, será solto no mesmo dia);
- Se você quer conceder ou publicar uma entrevista fazendo denúncias de corrupção ou criticando determinados políticos ou juízes, é um direito seu. Mas você corre o risco de ser enquadrado no inquérito da fake news, ter sua conta bancária bloqueada e seu passaporte cancelado (ou, se for o dono do jornal, de ser responsabilizado pela publicação e ter que pagar uma multa milionária);
- Se você é contra banheiros unissex, inclusive nas escolas das suas filhas, é um direito seu. Mas, se... Ops! Esqueci que este é um assunto proibido. A lista, aliás, está crescendo.
Etc.
Ou seja, você não perdeu nenhum direito. Mas se tiver a ousadia de querer exercer alguns direitos, arque com as consequências.
Em seguida vem a seção “Informação/Poder” – que inclui o artigo mais famoso da autora, “Por que votei em Bolsonaro”. O artigo começa assim: “Porque eu sou de esquerda”:
"É isto mesmo que você leu: eu votei em Bolsonaro não apesar de ser de esquerda, mas exatamente porque sou. (...) Votei contra a chapa Lula-Alckmin porque ela não é apenas uma representante do establishment - ela é a materialização do maior conluio corporocrata já visto numa campanha política. (...)
"A coisa é tão surreal que parece comédia. A elite toda esteve com Lula, em todos os níveis do Consenso Inc. - o cartel não oficial, mas extremamente síncrono, entre empresas, mídia, acadêmicos, especialistas, artistas e influencers que se manifestam a favor das mesmas coisas, às vezes com as mesmas palavras, e sempre ao mesmo tempo, dominando o discurso político e a agenda midiática. (...)
"A 'esquerda' que tomou conta do Brasil é formada por formadores de opinião. Esses espalhadores de dogma, preconceito e condenação moral estão bem abaixo do topo da pirâmide, mas ganham muito diñero, favores e pertecimento para convencer quem está ainda mais abaixo a prestar atenção apenas ao que não ameaça quem está acima."
Na mesma seção, aliás. estão os artigos de Paula sobre a Vaza-Jato e uma interpretação muito coerente e sagaz da súbita e incompreensível mudança radical de opinião e de comportamento de muitos jornalistas famosos, que passaram anos denunciando os mesmos personagens e as mesmas práticas que hoje elogiam, começando por... Deixa pra lá.
Completam Consenso Inc. as seções “Manipulação em massa”, “Saúde Pública”, “Corrupção” e “Imprensa”. Todas incluem textos brilhantes sobre a fabricação de consensos, a edição da realidade, a subordinação da razão (e da ciência) à ideologia, o politicamente correto (e intelectualmente raso) e a hipertrofia do Estado. Não deixem de ler.