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O rapper Snoop Dogg durante show no Canadá, em 2016.
O rapper Snoop Dogg durante show no Canadá, em 2016.| Foto: Charito Yap/The Come Up Show/Wikimedia Commons/Creative Commons Attribution 2.0 Generic license

“Hontem eu bebi uma cerveja. Hoje estou com vontade de beber outra vez. Mas, não vou beber. Não quero viciar. Tenho responsabilidade. Os meus filhos! E o dinheiro gasto em cerveja faz falta para o escencial. O que eu reprovo nas favelas são os pais que mandam os filhos comprar pinga e dá as crianças para beber.” (Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo)

O Supremo Tribunal Federal (STF), ultrapassando mais uma vez suas atribuições constitucionais e atropelando a eternamente combalida democracia brasileira, formou maioria e votou pela descriminalização do porte de maconha para pessoas com até 40 gramas da droga. Tal decisão tem como base o argumento do encarceramento em massa, utilizado, inclusive, por ministros como Cármen Lúcia na justificativa de seu voto a favor da descriminalização. Para Cármen Lúcia e para toda a militância em torno desse tema, muitos jovens negros são presos por serem pegos portanto pequenas quantidades de maconha, por isso a necessidade de distinguir melhor o traficante do mero usuário.

Há muitos problemas nessa justificativa. Primeiro porque o número de encarcerados por esse motivo, se contarmos aqueles pegos com até 100 gramas de maconha, é, segundo pesquisa recente do Ipea para o Atlas da Violência 2024, de pouco mais de 67 mil pessoas; ou seja, menos de 10% da quantidade de presos no geral (mais de 800 mil). Não se pode falar em “encarceramento em massa” com esses números. Sem contar que 100 gramas de maconha não é uma quantidade desprezível para uma pessoa andar na rua e não ser confundida com um traficante, se pensarmos que 10 gramas correspondem a 34 cigarros da droga, como disse o ministro André Mendonça para justificar seu voto contra a descriminalização. Um cigarro de maconha varia de 0,25 a 1 grama.

Para qualquer quantidade que for definida – no caso, 40 gramas –, os traficantes rapidamente não só se adequarão como, provavelmente, vão aumentar a sua atuação com base na quantidade estipulada

Segundo porque, para qualquer quantidade que for definida – nesse caso, 40 gramas –, os traficantes rapidamente não só se adequarão como, provavelmente, vão aumentar a sua atuação com base na quantidade estipulada. Com a diminuição dos custos da prisão de um jovem “aviãozinho” – traficante que leva a droga do ponto até o cliente e recebe o dinheiro –, ele poderá, inclusive, aumentar os seus pontos de tráfico. Muitos traficantes serão considerados usuários por estarem, no momento da abordagem, com a quantidade considerada normal da droga. É o famigerado Leito de Procusto: cobre-se a cabeça e se descobre os pés. Será que é assim que nossa Justiça deve agir? Penso que não.

Mas há um detalhe que me chama especial atenção nesse tema: a comemoração efusiva da militância negra para a descriminalização de uma droga. Óbvio que sua justificativa está baseada nos mesmos argumentos questionáveis do encarceramento em massa. Ou seja, se há muitos jovens negros fumando maconha e sendo presos por isso, vamos descriminalizar (e depois legalizar) o uso para que eles possam fumar sua maconha em paz. Lindo, não é mesmo? Só que não. Vamos aos dados do Ipea:

“Os sujeitos criminalizados como traficantes são, em sua maioria, homens (86%), jovens (72% com idade até 30 anos), de baixa escolaridade (67% não concluíram o ciclo de educação básica) e negros (68%) (Ipea, 2023a). O cruzamento da variável idade e cor/raça indica que 53,9% dos réus processados são jovens de até 30 anos e negros, simultaneamente.”

Ou seja, estamos falando de homens, jovens, negros e com baixa escolaridade (67% não concluíram nem sequer a educação básica). Parece-me que os diletos militantes negros estão celebrando, indiretamente, a vulnerabilidade desses jovens negros. Mas não só: estão condenando esses rapazes à subalternidade que já os atinge pela cor de sua pele. Maconha é uma droga, e uma droga que atinge diretamente o desenvolvimento do cérebro dos jovens. Como disse o médico psiquiatra Quirino Cordeiro, ex-secretário nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas do Ministério da Cidadania, em 2021, a esta Gazeta do Povo:

“Neste ano foi publicado um estudo no Journal of the American Medical Association (Jama), da Associação Americana de Medicina, que mostrou que a maconha causa alterações significativas no neurodesenvolvimento do usuário. Esses impactos são piores quanto mais precoce se faz o uso – quanto mais cedo se consome, maior é a chance de ter quadros psiquiátricos justamente por conta da alteração do neurodesenvolvimento que a droga causa. Esse estudo, que seguiu usuários de maconha por alguns anos, mostrou alterações no córtex cerebral desses usuários. A maconha também é fator de risco para quadros psiquiátricos como depressão e ansiedade. O impacto da maconha na saúde mental dos seus usuários é enorme. Há também relação entre o uso de maconha e o aparecimento de déficits cognitivos, que inclusive persistem após a interrupção do uso da droga.”

Como posso comemorar uma medida que estimula o uso de uma droga com esse potencial de danos cerebrais a uma juventude que, além de ter de enfrentar todos os problemas de ser negro no Brasil, em sua grande maioria nem sequer terminou os estudos? Como achar que a luta para diminuir o encarceramento de jovens negros tem mais a ver com a ideologia progressista do abolicionismo penal e com a liberação do uso de drogas do que com a educação e a busca pela superação da situação de vulnerabilidade a que a população negra e pobre parece estar condenada no Brasil – segundo a OCDE, o Brasil é o segundo pior país no ranking de mobilidade social? Por que não lutar para que o jovem negro deixe de se preocupar com o uso da maconha e passe a pensar em seu futuro? Nem todo jovem negro será artista para que o uso de maconha seja glamourizado e visto como um motor para sua criatividade. Muitos terão de lutar para superar imensas dificuldades a fim de garantirem uma melhor condição para si e para suas famílias.

Enquanto defendemos o direito de nossos jovens negros se drogarem em paz, eles drenam sua capacidade cerebral e são condenados à subalternidade e ao preconceito que tento criticamos

E não aceito o argumento de que podemos lutar pela educação e ascensão social da população pobre enquanto também lutamos pela descriminalização (e legalização) das drogas. O uso de nenhuma droga deve ser estimulado ou defendido na sociedade, sobretudo a uma população já tão vulnerabilizada como a brasileira. É um disparate considerar a discussão sobre drogas relevante quando, de acordo com o senador Confúcio Moura (MBD-RO), em audiência pública da Comissão de Meio Ambiente em novembro de 2023, “pelo menos metade da população sofre com problemas de saneamento básico. Dados oficiais indicam que 40 milhões de famílias não têm nem sequer um banheiro dentro de casa. E dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento indicam mais de 100 milhões de brasileiros sem acesso à coleta de esgoto e 35 milhões sem água tratada”.

Como falar em descriminalização de drogas quando o país está a ponto de se tornar um narcoestado? Se nem sequer discutimos o combate ao crime organizado com seriedade? O mesmo crime organizado, aliás, que ceifa a vida de dezenas de milhares de jovens negros todos os anos no tráfico de drogas (inclusive essa, que estão comemorando a descriminalização) e nas disputas de facções. Se os ditos especialistas em segurança pública, em geral progressistas, apelando ao mesmo abolicionismo penal e ao Direito Penal Mínimo, consideram o crime como um fenômeno social e desconsideram o confronto direto com as facções criminosas?

Agora, para finalizar, uma questão que considero, no mínimo, intrigante: moro perto de um supermercado. Num passado recente (faz algum tempo que não acontece), era relativamente comum ver jovens que tralhavam lá, no horário de seu almoço, usando uniforme, perambularem pelas ruas do bairro fumando maconha. Outro dia, conversando com o dono de um lava-rápido em que deixei meu carro para lavar, ao ouvir do dono que demoraria um pouco mais, pois estava com poucos funcionários, perguntei como era a relação de seus jovens funcionários com o trabalho. Ele respondeu: “já peguei vários que, com o local cheio de carros por lavar, se escondem atrás dos carros para fumar maconha”. Ou seja, parece que, diferentemente daquele que consome álcool, o usuário de maconha se sente autorizado e livre para consumi-la, por exemplo, durante o expediente de trabalho ou mesmo antes de iniciá-lo.

Ou seja, enquanto defendemos o direito de nossos jovens negros se drogarem em paz, eles drenam sua capacidade cerebral e são condenados à subalternidade e ao preconceito que tanto criticamos. Eu gostava mais quando, nas letras de rap, eu ouvia coisas como “vamos investir em nós mesmos, mantendo distância das drogas e do álcool”, nas sábias palavras de Netinho de Paula, em Fim de Semana no Parque, do Racionais MCs.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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