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Volto de um jantar. Apesar da boa comida e da conversa animada, estou meio borocoxô. A cena de Alexandre de Moraes participando de lançamento de projeto social do governo Lula me derrubou. Tudo ali é mentira, da democracia aos gritos dos xandetes. Sentindo o nojo e a raiva subindo pela garganta, me jogo no sofá. A Catota sobe no meu colo. A sensação é de derrota com retrogosto de humilhação. À procura de algo que anestesie meus sentidos, entro no Twitter e descubro que a conta de Janja foi hackeada.
Abro um semissorriso melancolicamente brasileiro. Leio os tuítes em sucessão, ora rindo e arqueando as sobrancelhas, ora arqueando as sobrancelhas e rindo. Ouço o manifesto antipolítica do hacker (suposto hacker?) e noto nele a voz e o nível intelectual de um adolescente. Sinto saudade dos meus 17 anos, mas não muita. E desperdiço ali uns bons quinze minutos da minha vida, à espera de uma revelação comprometedora, do Imponderável capaz de nos tirar dessa situação. Eis que minha imaginação começa a funcionar no modo turbo.
Mas, como não sei se posso divulgar aqui todas as mensagens antidemocráticas criadas pela minha imaginação, vou me contentar em citar apenas o que na hora me pareceu crível: alguma fofoca pessoal capaz de mexer com os brios de Flávio Dino; uma crítica perfeitamente racional (e, portanto, inaceitável) a Alexandre de Moraes; comentários politicamente incorretos sobre as figuras mais politicamente corretas da República; a revelação de um segredo do tipo “Lula morreu e foi substituído por um sósia”; um pedido de propina.
A grande revelação não vem. Nem a média. Nem a pequena. O que é estranho. “Não se fazem mais hackers como antigamente”, penso, e por um instante me coloco no lugar do herói improvável. Improbabilíssimo. Digo, se eu fosse invadir a conta de uma personalidade política controversa como a Janja não seria para ficar publicando bobagens envolvendo Neymar, né? Claro que eu divulgaria absolutamente todas as conversas privadas. E, se não encontrasse nenhuma, era bem capaz de inventar. Mas esse sou eu na versão Intercept.
Primeira-janja
Assim perdido entre as muitas possibilidades de evocar o Imponderável que haveria de nos salvar do conluio aparentemente indissolúvel entre o PT e o STF, de repente vejo começar a brotar a dúvida quanto ao divertido e inócuo hackeamento da conta de Janja no Twitter. Em pouco tempo, estou cercado por um bosque de pontos de interrogação. E aí o que era diversão com uma pitada bem minúscula de esperança se transforma no nojo & raiva de, mais uma vez, me perceber fazendo parte de um país onde até as fraudes são fraudulentas.
“Isso deve ser uma armação do próprio PT para justificar a censura às redes sociais”, sugere alguém. Reviro os olhos e, para a Catota, que tem a sorte de ser apenas a felina mais amada do mundo e de estar alheia a essas patuscadas humanas, digo que o pior, Catota, tá me ouvindo?, o pior é que essa hipótese é plausível. Simplesmente porque num governo que reuniu as mentes maquiavelicamente brilhantes de Flávio Dino, Paulo Pimenta, André Janones e Alexandre de Moraes tudo é possível. Até ataque hacker forjado para a primeira-janja, digo, dama posar de vítima. A Catota, evidentemente, não está nem aí.
Me distraio por um segundo e, quando percebo, a conspiração ganha contornos mais elaborados. E patéticos. A esquerda garante que o hacker agiu a mando do malvado Jair Bolsonaro. Ou seria de Carla Zambelli? E que os tuítes malcriados são consequência do machismo estrutural. Etc. Já a direita insiste na tese da cortina de fumaça criada não apenas para impor de vez a censura que, na prática, já rege nossas vidas. Mas também para nos distrair da sabatina de Flávio Dino no Senado ou da queda na popularidade de Lula ou da possibilidade muito real de Ricardo Lewandowski assumir o Ministério da Justiça.
Se ainda somos um povo criativo ou se nos tornamos paranoicos não sei. Só sei que o pior continua sendo isto: a plausibilidade de todas essas hipóteses. Porque, insisto, vivemos no país da mentira. O país onde o presidente da Suprema Corte Eleitoral não fica nem vermelho de participar de uma ação do governo que ele ajudou a eleger. O país governado por um ex-condenado. O país da imprensa apaixonada pela tirania de esquerda. O país que rasga a Constituição para proteger o Estado Democrático de Direito. O país do dane-se – como bem definiu alguém.