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Uma amiga me disse que temia que eu escrevesse que a megaoperação contra o tráfico no Rio de Janeiro, aquela que consumiu a vida de 115 pessoas em situação de bandidagem (sic) e 4 policiais, foi uma tragédia. Os leitores não vão gostar. Ué, mas sem nem eu explicar a que tipo de tragédia me refiro? “Nah, pode ficar tranquila”, respondi. Pode deixar. Meu leitor é inteligente, tolerante e curioso. Ele sabe que não sou defensor de vagabundo. Além disso, se tem uma coisa que meu leitor adora é uma boa provocação.
Por isso digo, sem medo de ser mal interpretado, que a megaoperação contra CV no Rio foi, é, está sendo uma tragédia. De vários tipos. Na verdade, por qualquer prisma que se olhe. Só de termos de discutir esse assunto já é uma tragédia. Ou melhor, só de termos de reagir ao noticiário dessa forma tão visceral e automática, assumindo uma postura 100% a favor ou 100% contra. Sem ressalvas nem nuances. Pão pão, queijo queijo. Do contrário, você é um isentão ou, pior!, defensor de bandido. E tem mais: a incapacidade de reconhecer as múltiplas tragédias dentro da tragédia já é, em si, uma tragédia.
Narcocultura
Mas não só. Se você parar para pensar, por exemplo, que 115 pessoas, na maioria jovens, estavam dispostas a dar a sua vida em defesa de uma facção criminosa... Que tragédia! E para quê, se mesmo com o dinheiro do tráfico essas pessoas continuam vivendo num lugar insalubre e sabendo que podem morrer a qualquer momento, em confronto com a polícia ou outra facção? É para ter um Playstation? Um tênis de marca? Ou será que é pela emoção, pelo risco e pelo poder absoluto, ainda que provavelmente fugaz, fugacíssimo? Não entendo.
Aliás, tive a oportunidade de conversar com o ex-secretário de Segurança Pública do Paraná, Wagner Mesquita, e ele mencionou outro aspecto que está sendo ignorado nessa discussão toda, o que é uma tragédia dentro da tragédia dentro da tragédia: a narcocultura. Que, sendo curto e grosso, tenta conferir uma legitimidade estética à riqueza obtida por meio da barbárie. Não por acaso, um de seus elementos essenciais é a ostentação de bens de luxo. Mas no diálogo de surdos que se instalou no debate público brasileiro ninguém fala disso. Aí está outra tragédia.
Celebração da morte
E é aqui que a tragédia social e a tragédia política se misturam. Porque a narcocultura exalta o traficante, com seus grossos cordões de ouro, o cabelo pintado de vermelho e o fuzil a tiracolo, como uma figura heroicamente rebelde. Ora, sejamos sinceros: a esquerda vê no bandido o revolucionário em potencial, aquele que ainda não se tornou esclarecido o suficiente, mas que é capaz de dar a vida e arriscar tudo por uma causa. E por isso o defende desavergonhadamente. Tragédia.
E mais uma: a celebração da morte. Como se o cancelamento desses 115 CPFs se traduzisse automaticamente em paz. Mas esse nem é o maior dos problemas. O maior dos problemas, a meu ver, é a completa descrença na capacidade de recuperação dessas pessoas. Desses jovens. Desses, sim, bandidos. Uma tragédia, sem dúvida. Porque elimina, e com um tiro de fuzil, qualquer possibilidade de redenção. Mas agora me pergunta se eu acredito que esses traficantes possam ser recuperados? Que eles possam se redimir. Não muito. Nesse caso, confesso que minha fé é teórica. O que é apenas mais uma entre tantas tragédias.
Falácias
Tem ainda o ganho político de Lula. Sim, ganho. Porque, não dá para negar, o sujeito é hábil. Esperto. Malandro. Tanto que, apesar de seu lado político defender explicitamente a bandidagem, o que não é visto com bons olhos pela população, sobretudo os mais pobres, Lula aproveitou a megaoperação para defender a PEC da Segurança, a nova panaceia dos especialistas em segurança pública, e que, se aprovada, será outra tragédia. Sem falar que o STF também já entrou na jogada e... tragédia.
Mas a pior tragédia é ver prosperadas as falácias. Entre elas, a mais abjeta: a de que qualquer crítica à ação policial ou qualquer defesa que se faça da vida, principalmente dos moradores das favelas, equivale a defender bandidos. E, no outro lado dessa moeda, a falácia de que a polícia fez o que fez porque quer eliminar os negros e pobres e as “vítimas da sociedade”. Nessas horas é que jogo as mãos para os céus e agradeço: obrigado, meu Deus. Porque meu leitor é esclarecido e ponderado e não se deixa seduzir por esse tipo de discurso raso e barato. Ufa.




