Feche os olhos por um instante. Ou melhor, abra, senão você não vai conseguir ler o texto. Agora, sim. De novo, mas agora com os olhos bem abertos, imagine que, depois de meses de intensas negociações entre Valdemar da Costa Neto e Gleisi Hoffmann, Michele e Janja, Marcel Van Hattem e Alexandre de Moraes, e em nome do fim da polarização política no Brasil, Lula e Bolsonaro se abraçam.
Sei que é difícil imaginar, mas se esforce, por favor. O movimento é todo ensaiado e acompanhado pelo espocar dos flashes. Ricardo Stuckert já está posicionado para pegar o melhor ângulo da imagem histórica. Os marqueteiros pensaram em tudo. Lula entra pela direita e Bolsonaro, pela esquerda. Os passos são firmes e decididos. Eles estão sérios e olham um no olho do outro. Olhares penetrantes, como se dizia antigamente. Aí eles param, abrem um semissoriso e se lançam num abraço fraterno.
Verdadeiramente fraterno? Falsamente fraterno? Por horas a fio, os telejornais e lives e programas de debate discutirão interminavelmente O Verdadeiro Caráter do Abraço Entre Lula e Bolsonaro. Durante alguns dias, especialistas em linguagem corporal serão os profissionais mais bem pagos do país. Memes ignorarão a intenção do gesto e se concentrarão nas figuras ausentes a essa declaração de paz.
Verdadeiramente fraterno
Mas, antes que você me pergunte, esclareço: foi verdadeiramente fraterno, sim, o abraço imaginário entre Lula e Bolsonaro. Tudo em nome do bem comum, como disse o ex-presidente e agora ex-fascista, ex-genocida Jair Bolsonaro na breve entrevista coletiva que se seguiu ao armistício. “Um país dividido é um país sem futuro porque um povo dividido não é capaz de compartilhar um mesmo objetivo de prosperidade e felicidade..........”, disse ele, fazendo suspense. “..........Talquei?”, completou, para a diversão de todos, inclusive dos jornalistas outrora carrancudos.
Depois foi a vez do Lula ocupar o microfone e falar de improviso. Contou que convidou Bolsonaro para deixar as diferenças de lado, beber uma branquinha e fazer as pazes. Fez sua tradicional metáfora futebolística. E deu uma, digamos, bronquinha carinhosa na imprensa: “Vocês têm que parar de tietar político. Eu já tenho a Janja pra me tietar. O Bolsonaro tem a Michele. Vocês têm que fiscalizar os poderosos”. Aí Lula anunciou que as eleições de 2026 teriam o voto impresso auditável e todo mundo ficou com cara de “ãhn? como assim?! isso tá acontecendo mesmo?”.
As imagens do abraço percorrem rapidamente o mundo. A Fundação Nobel decide antecipar a premiação para agraciar Lula e Bolsonaro com a distinta e cobiçada honraria. Ao perceber o poder do gesto, Paula Marisa promete abraçar Pavinatto. Anúncios do tipo se espalham feito pandemia: Felipe Neto diz que pretende abraçar Rodrigo Constantino (parabéns pra você/ nesta data querida), que diz que pretende abraçar Guga Chacra, que não diz nada porque estava secando a cabeleira e não ouviu.
“O presidente Lula sabe o que faz”, diz [INSIRA AQUI O NOME QUE VOCÊ MAIS ASSOCIA AO DISCURSO DE EXTREMA ESQUERDA] diante da incredulidade da militância petista. “O presidente Bolsonaro sabe o que faz”, diz [INSIRA AQUI O NOME QUE VOCÊ MAIS ASSOCIA AO DISCURSO DE EXTREMA DIREITA], diante da incredulidade da militância bolsonarista. “Eles sabem o que fazem”, diz [INSIRA AQUI O NOME QUE VOCÊ MAIS ASSOCIA A UM RADICAL DE CENTRO] diante da incredulidade dos isentões.
Não se sinta ofendido
Mas ninguém vai reclamar? – você me pergunta. Ninguém vai dizer que isso é um absurdo? Claro que vai e este é o ponto todo do texto. Se houvesse um abraço entre Lula e Jair Bolsonaro, e mesmo que as forças antagônicas hoje levantassem a bandeira branca e fumassem o proverbial cachimbo da paz, haveria quem visse interesses escusos no abraço. Por mais que eu, criador da cena, dissesse com todas as letras que o abraço foi verdadeiramente fraterno e realmente pretendia unir o país na realização do bem comum.
Sei dessa reação porque, ao imaginar o abraço entre Lula e Bolsonaro, senti a mesma coisa que você está sentindo. Não, não foi alívio nem aquela sensação de estar diante de um momento especialmente virtuoso da história brasileira. Da história humana. Não! Foi nojo mesmo. Acompanhado por uma sequência de pensamentos que oscilavam entre o cinismo e a paranoia. Ao que parece, perdemos a capacidade de imaginar os melhores cenários possível porque, no fundo, o que queremos não é o bem da sociedade nem a prosperidade do país nem nada do tipo. O que queremos é estar com a razão. É vencer. É o triunfo da nossa vontade. E é aí que mora o perigo.
Até porque a ideia de um grande, enorme, gigantesco, mastodôntico esforço de reconciliação nacional exigiria uma anistia tão ampla, tão geral e tão irrestrita que é inimaginável neste que já chamei de O Tempo das Ideias Imperdoáveis. Muitos insultos teriam de ser engolidos. Muitos inquéritos teriam de ser arquivados. Muito pano teria de ser passado. A imprensa também teria de fazer seu papel e abandonar o vício no entretenimento político. E só de imaginar tudo isso nos sentimos afrontados em nosso senso de justiça. Um senso de justiça que, confessemos, se baseia no desejo de vingança. Nossa capacidade de perdoar é....
Ora, não se sinta ofendido, estimado leitor. Fiz questão de escrever o parágrafo anterior usando a primeira pessoa do plural (nós) para me incluir entre os que provavelmente rejeitariam qualquer gesto de reconciliação nacional. Por quê? Será que passamos do ponto em que uma reconciliação era possível? Ou será que ninguém está imune ao que vou chamar de Síndrome da Mentalidade Revolucionária? Seja como for, a cena está aí, toda imaginadinha para você. Aproveite que o fim de semana está chegando e aprecie sem moderação.
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