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Constitucionalismo Feminista – um movimento necessário

(Foto: Imagem criada utilizando Gemini/Gazeta do Povo)

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Em O Colecionador, John Fowles relata a história de um homem que, com problemas mentais, sequestra e mantém em cativeiro uma jovem, artista, com o objetivo de obrigá-la a por ele se apaixonar. A jovem, Miranda, vive no porão da residência do homem e é por ele alimentada através de uma portinhola, pela qual ela tenta por inúmeras vezes escapar. Entre uma mistura de ódio e de dúvida, a jovem chega, em algum momento, a corresponder às expectativas do homem, mas o resultado é uma confusão de sentimentos que a conduz, infelizmente, a sucumbir diante de tão trágica, triste e resistente realidade. A narração acima corresponde à realidade de inúmeras mulheres e meninas, dos mais variados nichos sociais e culturais.

Em nossa atividade profissional, tivemos a oportunidade de atender uma mulher, médica, mãe de bebês pequenos que, adoecida emocionalmente em razão de um relacionamento tóxico, perdeu seus bens, dinheiro, emprego, amigos e renda, além de credibilidade em sua área de trabalho. Como se ainda não fosse o suficiente, o ex-cônjuge recusava-se a provê-la de sustento básico que lhe permitisse atender às suas necessidades fundamentais de autocuidado e saúde.

Ao ler ou ouvir sobre o tema Constitucionalismo Feminista, Literatura Feminista, ou Feminismo, simplesmente, é de todo relevante fazê-lo sem pré-conceitos e pré-julgamentos

Por essa razão, o tema do constitucionalismo feminista surge como um movimento necessário. Constitucionalismo feminista é um discurso, um movimento intelectual, que se destina a propalar uma leitura da Constituição pelas lentes de teorias, de abordagens feministas. Trata-se de compreender que existem contextos de vulnerabilidade nos quais mulheres e meninas se inserem, notadamente por motivos de ordem cultural e social. Assim é que, em 30 de julho de 2025, tivemos a honra e a alegria de participar, em Brasília, de evento organizado pelas professoras Estefânia Barboza, Melina Fachin e Christine Peter no âmbito da prestigiada International Society of Public Law, com o objetivo de discutir problemas específicos relacionados à temática do constitucionalismo feminista. As professoras coordenaram uma mesa de debates, da qual participaram várias professoras e pesquisadoras de diversos países, todas atentas aos reflexos nefastos que contextos (velados ou não) de subordinação podem produzir sobre mulheres de diferentes faixas de renda, de diferentes nichos sociais, de diferentes gerações. A mesa redonda fez parte de um momento em que as professoras Estefânia, Melina e Christine organizam o quarto volume de uma obra coletiva na qual diversos autores abordam a temática do constitucionalismo feminista por recortes específicos – conceitos fundamentais, casos práticos, teorias.

De nossa parte, contribuímos na elaboração do quarto volume da obra coletiva com um artigo cujo título é Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero: uma análise teórica sobre a crítica do viés cognitivo. O objetivo do artigo foi dialogar com texto crítico publicado pelo professor e autor Lenio Luiz Streck acerca do então editado Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, do Conselho Nacional de Justiça. O documento orientador para magistrados e magistradas quando da análise de processos que envolvam violação a direitos de mulheres e meninas, resulta de estudo elaborado por Grupo de Trabalho instituído pelo Conselho Nacional de Justiça - CNJ, formado por representantes de todos os segmentos da justiça e também da academia.

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O documento contém três partes, quais sejam: uma primeira, onde são apresentados  dados estatísticos e informações teóricas sobre questões de gênero; uma segunda, que estrutura um guia para a tomada de decisão pela magistratura nacional, sendo uma espécie de "passo a passo processual"; e uma terceira, na qual são discriminadas questões de gênero específicas para cada ramo da Justiça. Concluído em 2021, o protocolo teve o objetivo de "colaborar com a implementação das políticas nacionais relativas ao enfrentamento à violência contra as mulheres e ao incentivo à participação feminina no Judiciário", em alinhamento com a experiência de outros países e em cumprimento à sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso do feminicídio de Márcia Barbosa de Souza vs. Brasil. Em 2022, a Recomendação CNJ 128 tratou da adoção do Protocolo em todo o Poder Judiciário. Finalmente, em 2023, a Resolução CNJ 429  fixou a obrigatoriedade de suas diretrizes em todo o território nacional. Em síntese, o protocolo é um documento orientador cujas disposições normativas, essencialmente, destinam-se a determinar a magistrados e magistradas a seguirem um passo a passo; basicamente, a fazerem perguntas que possam melhor elucidar as violações por razões de gênero experimentadas em casos judicializados.

Portanto, ao ler ou ouvir sobre o tema “Constitucionalismo Feminista”, “Literatura Feminista”, ou “Feminismo”, simplesmente, é de todo relevante fazê-lo sem pré-conceitos e pré-julgamentos, tendo em mente que se está diante do trabalho de pessoas vocacionadas a refletir a agir sobre condutas violadoras de direitos elementares de mulheres e meninas – a saber, liberdade e integridade física, moral e emocional – que se encontrem em situações de vulnerabilidade. Muitas vezes, essas mulheres e meninas não têm qualquer possibilidade de serem lidas ou ouvidas,  como é o caso da personagem  Miranda. A história de Miranda, infelizmente, começou e terminou no porão da casa de um perigoso e desconhecido colecionador. Necessário, portanto, trabalhar todo o instrumental jurídico possível de modo a não permitir a perpetuação e o surgimento de novas Mirandas.

Ana Lucia Pretto Pereira é mestre e doutora em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Paraná, com doutorado-sanduíche em Teoria do Direito na Universidade de Harvard. Autora de livros e artigos, é advogada e sócia-fundadora da EloGov.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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