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Diários Secretos

Como surgiu a investigação de um dos maiores casos de corrupção estadual

Abib Miguel, Bibinho, esteve no cerne das investigações dos "Diários Secretos"
Ex-diretor da Alep terá que devolver R$ 258 milhões por esquema revelado em série de reportagens encabeçada pela Gazeta do Povo e pela RPCTV, nos anos 2000. (Foto: Jonathan Campos/Arquivo Gazeta do Povo)

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Após 15 anos do início da série de reportagens investigativas divulgadas pela Gazeta do Povo e pela emissora RPCTV, o escândalo de corrupção que ficou conhecido como “Diários Secretos” é alvo de um acordo firmado pelo Ministério Público do Paraná (MP-PR) e o principal réu dos processos, o ex-diretor da Assembleia Legislativa do Paraná (Alep) Abib Miguel, 85 anos, mais conhecido como Bibinho.

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A investigação, iniciada pela equipe da RPC e que na sequência teve o reforço de jornalistas da Gazeta do Povo, revelou o sistema de nomeação de funcionários fantasmas na sede do Legislativo do Paraná com a impressão dos Diários Oficiais em uma gráfica no subsolo da Alep destinada apenas para circulação interna, com o objetivo de esconder os nomes dos “servidores”, entre eles, pessoas que sequer sabiam dos salários recebidos como funcionários públicos. Os vencimentos eram desviados pelos envolvidos na quadrilha comandada por Bibinho com saques simultâneos em uma agência que funcionava dentro da Assembleia Legislativa. 

No desdobramento da apuração do caso, o acordo com Bibinho protocolado no Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) foi confirmado pelo MP-PR. A homologação ocorreu nesta segunda-feira (28).

Segundo informações da RPC, Bibinho deve ressarcir os cofres públicos em R$ 258 milhões, valor de desvio identificado acrescido de correção monetária. Além disso, ele deverá pagar uma multa de R$ 3,6 milhões como penalidade adicional. Conforme o MP-PR, Bibinho é investigado por organização criminosa, corrupção, peculato, lavagem de dinheiro e outros crimes apurados durante as operações Diários Secretos e Argonautas. 

Mais da metade das ordens de demissões e contratações na Alep entre 2006 e 2009 foram impressas em edições avulsas do Diário Oficial que nunca se tornaram públicas.

Apesar das tentativas de invalidação, as provas colhidas foram reconhecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Foi a partir da série de reportagens “Diários Secretos” que as investigações tomaram forma até ser possível desmantelar um dos maiores esquemas de corrupção estadual do país, que obrigou a própria Assembleia Legislativa a tomar medidas para aprimorar a transparência. Além disso, o acordo entre o MP-PR e o réu - que confessou os crimes - garante o retorno de um valor substancial do montante desviado aos cofres públicos.

Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil no Paraná (OAB-PR) na época dos fatos, o advogado José Lúcio Glomb ressalta que a entidade teve uma “reação absolutamente necessária” diante das denúncias reveladas pela imprensa, dando origem ao movimento “O Paraná que queremos”.

“A participação da imprensa foi fundamental e serve como exemplo do papel destacado que a imprensa livre precisa ter no país”, comenta. Para Glomb, a relevância do caso também demonstra que a população brasileira reage quando existe a comprovação de casos de corrupção e considera que o acordo terá um “ressarcimento substancial ao erário daquilo que foi reconhecido”.

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Edição secreta com nomeação surpreendeu trabalhador rural

Ex-repórter da Gazeta do Povo, a presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Katia Brembatti, integrou a equipe de jornalistas que revelaram os desvios, composta também pelos ex-produtores da RPC James Alberti e Gabriel Tabatcheik, além do então repórter da Gazeta do Povo Karlos Kohlbach.

Ela lembra que outras reportagens sobre denúncias envolvendo funcionários fantasmas na Alep já haviam sido publicadas, no entanto, a série dos “Diários Secretos” revelou como o sistema de nomeações funcionava dentro da Assembleia Legislativa para o desvio do dinheiro público.  

Conforme as informações das reportagens à época, mais da metade das ordens de demissões e contratações emitidas pela Alep entre 2006 e 2009 foram impressas em edições avulsas do Diário Oficial que nunca se tornaram públicas. O esquema envolvia “laranjas”, pessoas que concordavam em participar do esquema em troca de uma parte dos salários, e também pessoas que não tinham conhecimento da nomeação e das contas abertas em seus nomes para o recebimento de salários.

Brembatti destaca que a investigação jornalística começou de formas diferentes, na RPC e na Gazeta do Povo, até que os caminhos das equipes se cruzaram. De acordo com ela, ao fazer uma reportagem sobre funcionários fantasmas de uma deputada, James Alberti recebeu como resposta, de um parlamentar, que se tratava de uma perseguição, pois “todos os deputados tinham funcionários fantasmas”. Ele foi então em busca da fonte que havia passado os documentos de nomeação e descobriu onde as informações ficavam guardadas na Alep.

Nessa mesma época, Brembatti recorda que, em 2008, fez a cobertura de um esquema investigado pela Polícia Federal (PF) na operação Gafanhoto, que identificou funcionários fantasmas por meio das declarações de imposto de renda. A partir daí, ela chegou a um servidor fantasma da Assembleia do Paraná que não estava na relação da PF.

“Ele era um bóia-fria [trabalhador rural], de uma cidade pequena do Paraná. Mostrei o documento de nomeação e ele disse que nunca tinha visto e que não sabia que era funcionário da Alep. Naquela época, a Assembleia publicava várias nomeações no mesmo ato. Ele disse que conhecia as outras pessoas da lista, que também não tinham conhecimento que eram servidores”, lembra.

Assim, a Gazeta do Povo começou a integrar a investigação das edições do Diário Oficial em parceria com a RPC, que já havia começado a apurar o esquema na Alep. Segundo ela, só o trabalho para construir a base de dados de funcionários fantasmas levou oito meses.

O trabalho de jornalismo investigativo da Gazeta do Povo e da RPC recebeu honrarias como o Prêmio Esso de Jornalismo e o Prêmio Tim Lopes da Embratel, em 2010. No ano seguinte, conquistou o prêmio de Melhor Reportagem Investigativa Latinoamericana, no Equador, e o “Global Shining Light Award”, na Ucrânia.

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“Diários Secretos” e a economia de R$ 2 bilhões aos cofres públicos

A jornalista Kátia Brembatti afirma que a identificação do esquema levou a uma economia aos cofres públicos de aproximadamente R$ 2 bilhões. A estimativa foi feita em 2020 durante a produção de um podcast pelos 10 anos da série de reportagens dos “Diários Secretos”. 

“Ou seja, se o jornalismo não tivesse mostrado esse problema para que fosse estancado esse desvio, havia perspectiva real de pelo menos mais R$ 2 bilhões serem desviados dos cofres públicos”, afirma.

Na avaliação dela, o volume do ressarcimento proposto é significativo. E comparou o caso paranaense com o acordo firmado entre a família do ex-prefeito de São Paulo Paulo Maluf, 93 anos, e o MP paulista para a devolução de R$ 210 milhões por desvio entre 1993 e 1996, durante a gestão da capital. Por conta da idade dos réus, existia o risco de prescrição tanto no caso de Maluf como no de Bibinho.

“É um caso mais antigo e o valor do acordo é menor. O valor não é irrisório. Não representa tudo o que foi desviado, obviamente. Mas é um valor simbólico para o Paraná e espero que seja usado para alguma coisa muito representativa”, opina.

Jornalismo investigativo foi divisor de águas na política paranaense

A jornalista Carolina Woff, da RPC, acompanhou os desdobramentos na Justiça da série de reportagens dos “Diários Secretos” e afirma que a investigação, conduzida por uma equipe de jornalistas investigativos ao longo de dois anos, foi “um divisor de águas” na política paranaense. 

“Foi um divisor de águas para o jornalismo da TV e para a história política do Paraná. Até então a gente não via denúncias, punições ou grandes investigações envolvendo figuras tão poderosas no estado”, comenta a repórter, responsável pela cobertura dos 10 anos do início da série “Diários Secretos” em 2020.

Woff lembra que uma equipe especial foi criada pela RPC para apurar o caso com base nos Diários Oficiais da Assembleia Legislativa do Paraná. “Eles passavam horas e horas, durante dois anos, apurando as informações em uma sala. A investigação não foi aberta para evitar o risco de qualquer vazamento. A gente sabia que tinha uma investigação, mas não sabia exatamente o que era”, recorda. “Um trabalho extremamente responsável de uma equipe de quatro jornalistas que conseguiu desvendar um esquema de corrupção milionário e gigantesco dentro da Assembleia”, ressalta a repórter.

O trabalho foi o ponto de partida para uma série de ações judiciais que se arrastaram por anos. Woff avalia que os processos tiveram desfecho mais célere no caso dos “servidores fantasmas”, mas levaram muito mais tempo para alcançar os altos cargos da Alep. Um dos principais alvos, Abib Miguel chegou a ser condenado a mais de 200 anos de prisão antes do acordo com o MP-PR.

Para a repórter da RPC, ainda que tardia, a devolução de R$ 258 milhões é uma resposta à cobrança da sociedade e comparou o montante ao custo de obras públicas como pontes, duplicações de estradas ou até ao orçamento de pequenos municípios do estado. A jornalista avalia que, após o escândalo, a Alep passou por mudanças importantes.

Medidas como a adoção do ponto eletrônico e o fechamento da gráfica legislativa — apontada como peça-chave no esquema de corrupção — simbolizam avanços na transparência. No entanto, Woff alerta que ainda há desafios, sobretudo no controle de agentes políticos que não cumprem expediente dentro do prédio público. “A sociedade precisa ter certeza de que os funcionários estão trabalhando e contribuindo de fato com a atividade parlamentar, pois eles são pagos com dinheiro público”, defende ela.

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