A possibilidade de um dos cônjuges fazer uso de embriões para gerar uma criança quando o parceiro já tiver morrido é tema de um projeto em tramitação no Senado. A questão ainda não é regulamentada no Brasil e especialistas ouvidos pela reportagem apontam que a proposição pode trazer insegurança jurídica. A proposta é de autoria da senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP).
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O Projeto de Lei 1.851/22 foi apresentado em 1º de julho e ainda precisa ser designado para as comissões do Senado, onde seguirá o ritmo normal de tramitação. Segundo a ementa da proposição, o texto pretende alterar "o art. 1.597 do Código Civil para dispor sobre o consentimento presumido de implantação, pelo cônjuge ou companheiro sobrevivente, de embriões do casal que se submeteu conjuntamente a técnica de reprodução assistida".
De acordo com a autora da medida, o ordenamento jurídico é omisso quanto ao uso de embriões post mortem. Em entrevista à Gazeta do Povo, a senadora explicou que decidiu apresentar o projeto após o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ter negado, no ano passado, o pedido de uma viúva que gostaria de implantar dois embriões deixados pelo marido - que havia morrido.
Conforme a decisão do STJ, o pedido foi negado porque não havia uma manifestação direta e formal do marido falecido. Naquele momento, os embriões estavam congelados há quatro anos. Segundo a ação, após a morte do esposo, em 2017, a mulher manifestou o interesse de continuar com o processo de fertilização iniciado pelo casal. Mas os filhos do primeiro casamento dele recorreram à Justiça e argumentaram que não havia regulamentação sobre a utilização dos embriões após a morte de um dos cônjuges.
Para a autora do projeto, o formalismo do STJ impediu a fertilização. Em contrapartida, juristas ouvidos pela reportagem apontam o fato de o texto - da forma como está atualmente - gerar insegurança jurídica.
"A ausência de uma legislação específica sobre o tema leva o tribunal a se ater a formalismos que impedem a viúva de implantá-los e ser mãe. A ideia do projeto de lei é sanar essa lacuna na nossa legislação. Lembrando que se o pai não quiser que o embrião seja implantado em caso de falecimento, poderá deixar isso registrado", argumentou a senadora.
Por outro lado, a juíza Ana Cláudio Brandão, que é presidente da Comissão Nacional de Biodireito da Associação de Direito de Família e Sucessões (ADFAS), afirmou que a proposta apresentada pela senadora vai trazer mais insegurança jurídica ao estipular o "consentimento presumido". "O projeto prevê o consentimento presumido, se você não escrever que não quer ou não autoriza, os embriões poderão ser utilizados. E, ao contrário do que a autora do projeto diz, isso vai criar mais insegurança jurídica. Primeiro porque é uma exceção. Vários países sequer admitem inseminação post mortem - Alemanha e França não admitem - Portugal e Espanha admitem, mas desde que haja uma documentação, no sentido de que a pessoa autoriza. O consentimento presumido gera mais insegurança jurídica", explicou.
O diretor da União dos Juristas Católicos de São Paulo, Miguel Vidigal, também critica a proposta por "dar carta branca" para alguém usar os embriões de uma pessoa que já morreu. "Sabemos que um morto não tem capacidade civil, deixa ele de ser sujeito de direitos e obrigações. Como esperar que um morto seja obrigado a ser pai após a morte? Como tirar dele o direito de conhecer e abraçar sua prole? Ainda mais grave, como tirar daquele ser a ser concebido, o direito de conhecer seu genitor?", indagou Vidigal.
Resolução do CFM
No Brasil, não existe uma lei sobre a reprodução assistida. Há apenas a Resolução nº 2.294/21 do Conselho Federal de Medicina (CFM), publicada em 27 de maio de 2021, que regula a utilização das técnicas sobre o procedimento. O documento apresenta a delimitação do número de embriões gerados em laboratório, a alteração etária para doação de gametas (óvulos e espermatozoides) e a transferência de embriões.
"As técnicas de reprodução assistida podem ser utilizadas desde que exista possibilidade de sucesso e baixa probabilidade de risco grave para o paciente ou seu possível descendente, permanecendo a idade máxima de 50 anos para as candidatas. As exceções deverão ser baseadas em critérios técnicos e científicos fundamentados pelo médico responsável, respeitando a autonomia da paciente e do médico", citou o CFM no documento.
A mesma resolução diz que "é permitida a reprodução assistida post mortem desde que haja autorização específica do(a) falecido(a) para o uso do material biológico crio preservado, de acordo com a legislação vigente".
Tramita no Congresso Nacional há 23 anos um projeto de lei que trata sobre reprodução assistida, apresentado pelo então senador Lúcio Alcântara (CE). O PLS 90/1999 foi aprovado no Senado em 2003, mas aguarda até hoje a análise na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) na Câmara dos Deputados. Em setembro do ano passado, foi aprovado um requerimento de audiência pública para debater as normas para a realização de procedimentos de Reprodução Humana Assistida no Brasil.
A proposta define normas para realização de inseminação artificial e fertilização "in vitro"; proibindo a gestação de substituição (barriga de aluguel) e os experimentos de clonagem radical.
De acordo com o texto, em caso de falecimento do depositante, o projeto prevê que é "obrigatório o descarte de gametas", que são os óvulos e espermatozoides, "salvo se houver manifestação de sua vontade, expressa em documento de consentimento livre e esclarecido ou em testamento, permitindo a utilização póstuma" do material. O projeto prevê também que será considerado crime utilizar gametas sem a autorização prévia de depositantes falecidos. Nesse caso, a punição prevista é de pena de reclusão de um a três anos e mais o pagamento de multa.
De acordo com a juíza Ana Cláudia Brandão, a falta de uma lei reprodução humana assistida ocasiona muitos problemas no Brasil. Além disso, ela destacou que existe a possibilidade de as pessoas envolvidas mudarem de opinião ao longo do processo.
"Os pacientes que vão para as clínicas precisam assinar um termo de consentimento informado. Eles dizem qual o destino dos embriões em caso de morte, se vão ser descartados, se vão ser doados para pesquisa ou se um dos cônjuges pode ficar ou não. Muitas pessoas assinam os termos, mas, futuramente, podem mudar de opinião. Um quer usar o embrião, o outro não quer autorizar e fica essa confusão, porque não temos uma lei específica sobre reprodução assistida e nem o estatuto do embrião", explicou a juíza.
Segundo ela, há vários casos em que o doador se arrepende posteriormente, o que gera "incertezas" sobre qual será a destinação dada ao embrião. "Tivemos um caso em Brasília em que [as partes] acordaram que o embrião poderia ficar com a mulher em caso de divórcio. O casal se divorciou, o homem se arrependeu e entrou na justiça para descartar o embrião. A justiça deu ganho de causa a ele, pois poderia ocorrer o arrependimento. São muitas incertezas, porque não existe norma jurídica, apenas normas do CFM", disse.
No Brasil, há aproximadamente 100 mil embriões congelados, segundo dados do Sistema Nacional de Produção de Embriões (SisEmbrio) informados à reportagem pela magistrada.
O Sistema Nacional de Produção de Embriões (SisEmbrio) é administrado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitaria (Anvisa). Ele reúne informações sobre a produção dos Centros de Reprodução Humana Assistida (BCTGs), também conhecidos como clínicas de fertilização ou Bancos de Células e Tecidos Germinativo.
O último levantamento do SisEmbrio foi divulgado em 2020 com dados de 2019. O relatório traz informações sobre congelamento de embriões, doação de material para pesquisa e ciclos de fertilização in vitro.
Consentimento presumido
Segundo a senadora Mara Gabrilli, a fertilização tem se tornado cada vez mais frequente, inclusive após o falecimento de um dos cônjuges, o que torna a discussão sobre o projeto de sua autoria ainda mais importante. "Recentemente tive notícia de alguns casais que estavam utilizando o método de fertilização in vitro para engravidar. O pai faleceu por conta da pandemia de Covid e as mães têm dado sequência no procedimento para implantar os embriões, sem impedimentos legais", afirmou.
Apesar disso, Ana Cláudia Brandão salientou que o consentimento presumido em doação de órgãos no Brasil foi revogado pelo ex-presidente Michel Temer (MDB), o que conferiu mais poder a parentes próximos no momento da tomada de decisão sobre a autorização ou recusa. "Todo mundo era doador de órgãos presumido, e quem não quisesse doar teria que deixar por escrito. Essa sistemática de consentimento vigorou no Brasil e não deu certo. Ela foi revogada porque gerava a insegurança de não saber a real vontade do doador", disse.
"Ao meu ver, a utilização do embrião post mortem é excepcional e, sendo o planejamento familiar calcado na autonomia, não deve haver qualquer dúvida quanto à autorização para utilização do embrião após a morte de um dos cônjuges ou companheiros", ressaltou a juíza.
O projeto
O Projeto de Lei 1.851/22 altera o artigo 1.597 do Código Civil para dispor sobre o consentimento presumido de implantação, pelo cônjuge ou companheiro sobrevivente, de embriões do casal que se submeteu conjuntamente a técnica de reprodução assistida.
A proposta prevê a inclusão de dois parágrafos no referido artigo do Código Civil (Lei 10.406, de 2002) de forma a tornar possível a implantação dos embriões independentemente da autorização prévia expressa do cônjuge ou companheiro falecido, o chamado "consentimento presumido". Se, porém, a pessoa falecida tiver deixado explícita a sua recusa em consentir a utilização post mortem de embriões, essa vontade será necessariamente respeitada, tenha sido firmada em testamento, outro documento formal equivalente ou mesmo no termo formal de submissão às técnicas de reprodução assistida.
Segundo o texto do projeto, "as clínicas médicas, centros ou serviços responsáveis pela reprodução assistida, deverão indagar ao cônjuge ou companheiro, na oportunidade em que for documentada a sua autorização para participar de técnicas de reprodução assistida, se discorda quanto ao uso desse material para a fecundação artificial ou implantação de embriões após a sua morte, registrando a sua manifestação de vontade no mesmo documento”.
Na avaliação do advogado Miguel Vidigal, a proposta ainda pode trazer "inúmeras interferências" ao ordenamento jurídico do país, principalmente em relação a questão da sucessão. "Imagine que após a morte, que os herdeiros nascidos façam a distribuição dos bens deixados pelo falecido. O que fazer se o falecido vier a ter um herdeiro após o encerramento do inventário? Os herdeiros previamente vivos terão uma dívida com o novo irmão? E se já tiverem gasto tudo? E se a lei disser que o novo nascido não terá direito à herança já distribuída, não será ainda mais uma afronta a direitos básicos de qualquer cidadão?", questionou.
Para Vidigal, o projeto em análise no Senado não cria uma solução, mas um problema. "Compreendo a dor da mulher por não conseguir ter o filho do falecido marido, mas a solução para o problema não parece ser a apresentada pelo projeto de lei. E pelo andar da carruagem do projeto de lei anterior sobre a reprodução assistida, que se arrasta sem solução pelas salas do Congresso, espero que esse novo projeto também não saia do papel", opinou.
Em relação às polêmicas sobre o assunto e a possível resistência de ser aprovado no Senado, a parlamentar ressaltou que, como todo projeto, ainda haverá debates e discussão do tema.
"O Senado é bastante plural e temos parlamentares com diversos tipos de opinião. Num primeiro momento, até pode haver alguma resistência, mas acredito que se os parlamentares entenderem o conceito do projeto, ele tem todas as chances de ser aprovado. É uma questão de amor, bom senso e empatia", argumentou a senadora Mara Gabrilli.
Outros senadores foram procurados pela Gazeta do Povo para opinar sobre o projeto, mas nenhum quis se pronunciar até ter mais conhecimento sobre a proposta legislativa.
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