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Karina Kufa

Karina Kufa

Liberaram a maconha? 

(Foto: Daniel Castellano/ Gazeta do Povo )

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O Supremo Tribunal Federal trouxe mudanças que afetaram a Lei de Drogas, e, com isso, muita dúvida ficou na cabeça de quem assistiu ao julgamento ou acompanhou as notícias nos veículos de comunicação. Até mesmo alguns especialistas se pronunciaram de forma equivocada, como se agora qualquer cidadão teria a liberdade de fumar cigarro de maconha nas áreas públicas sem qualquer repreensão. 

Diante disso, neste pequeno espaço, vou buscar explicar o que aconteceu e apresentar a minha opinião sobre esse tema tão espinhoso.   

Há quase 20 anos, a Lei nº 11.343, de agosto de 2006, instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre as drogas, além de uma série de políticas afetas - incluindo medidas de prevenção, repressão e punição, relacionadas ao uso, porte e/ou tráfico ilícito.

O artigo 28 da norma especificou penas de advertência, prestação de serviços comunitários e/ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo, para quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização. Já para o tráfico de drogas, objeto do artigo 33, previu-se pena de até 15 (quinze) anos de reclusão. 

Ainda, de acordo com o §2º do art. 28, para determinar se a droga se destinava a consumo pessoal, as autoridades teriam que sopesar a natureza e a quantidade da substância apreendida, o local e as condições em que se desenvolveu a ação, as circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e os antecedentes do agente. 

Esse dispositivo legal foi o responsável, de fato, pela flexibilização das sanções criminais ao usuário de drogas, diferenciando-o do traficante. 

Contudo, a previsão, por ser subjetiva, deixava a responsabilidade para o agente de segurança pública avaliar se o caso averiguado é de tráfico ou porte de droga para consumo próprio, num primeiro momento.

Imagine o seguinte cenário: um policial militar passava por área conhecida pelo comércio ilegal de entorpecentes, quando flagrou um cidadão entregando dinheiro a outro, ao mesmo tempo em que recebia um pacote fechado. Ao fazer a abordagem, o policial apreende trinta cigarros de maconha, dois mil reais em dinheiro, e, diante do flagrante delito, prende o traficante. 

Em juízo, entretanto, o traficante alega que portava aqueles trinta cigarros para consumo próprio, com base no artigo 28 da Lei nº 11.343/06. Apesar de todas as evidências apontarem para o tráfico, o juiz poderia entender não ter sido cabalmente comprovado o crime, aplicando o in dubio pro reo. Como visto, não era tão fácil definir quando se tratava de tráfico.

Essas discussões, em razão da falta de critérios objetivos, tomaram o judiciário, em infindáveis Habeas Corpus nos tribunais de justiça, no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal.

E foi por conta de um desses processos, recebido pelo Supremo Tribunal Federal em 2011 e julgado recentemente - no dia 25 de junho de 2024  - que o assunto voltou à tona, trazendo repercussões, a meu ver, ainda mais desastrosas do que a própria lei.

Assim, no Recurso Extraordinário nº 635.659, por maioria, vencidos os Ministros Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques e Luiz Fux, o Supremo Tribunal Federal fixou, em síntese, o entendimento de que:

  1. Não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabis sativa (sem menção a outras drogas), cabendo à autoridade a aplicação das sanções de advertência pelo consumo da maconha (artigo 28, I) e/ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (artigo 28, III); 
  2. Essas duas sanções serão aplicadas pelo juiz em procedimento de natureza não criminal, em procedimento a ser aprovado pelo CNJ, porém, até que isso seja implementado, as sanções serão aplicadas pelo Juizados Especiais Criminais;
  3. A autoridade policial fará a apreensão da droga e notificará o autor do fato para comparecer em juízo, porém não será lavrado auto de prisão em flagrante ou termo circunstanciado;
  4. Será presumido usuário quem, para uso próprio, adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo até 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas fêmeas, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito;
  5. Essa presunção é relativa, podendo a autoridade policial lavrar o flagrante por tráfico até mesmo em quantidades apreendidas inferiores a 40 gramas ou seis plantas fêmeas. Ou seja: em decorrência do volume de discussões no judiciário sobre a quantidade de drogas e classificação delitiva, buscou-se definir um quantitativo como sugestão, e não critério objetivo; 
  6. Os demais critérios - ou seja, a definição da natureza, local e condições em que se desenvolveu a ação, circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e aos antecedentes do agente -, continuam sendo válidos para a tipificação. Assim, a demonstração de mercantilização, forma de acondicionamento e variedade da droga, apreensão de anotações, balança, registros nos aparelhos celulares como diálogos ou contatos registrados de traficantes e diversos usuários, devem ser analisados pela autoridade; 
  7. Em havendo o atendimento desse limite, deverá o delegado de polícia consignar, no auto de prisão em flagrante, as justificativas para o afastamento da presunção do porte para uso pessoal, devendo o juiz fazer nova análise para manter ou afastar a tipificação por tráfico;
  8. Nenhuma das autoridades poderá descrever critérios raciais para a fundamentar a sua decisão;
  9. Continua proibido portar ou fumar maconha em espaços públicos; o que mudou é a forma de abordagem policial e suas consequências. Contudo, ainda abordaremos o efeito prático de excluir as sanções do usuário, o tratando apenas como uma vítima e não parte de um sistema criminoso. 

Por falta até mesmo de informação, algumas pessoas, desconhecendo que, desde 2006, a lei já permite manobra para a descaracterização do tráfico, chegaram a afirmar que somente agora o usuário de maconha seria descriminalizado, desde que carregasse consigo até 40 gramas ou seis plantas fêmeas.

Acontece que essa lei vintenária, de alguma forma, já favorecia o sistema, deixando que a dúvida ou insuficiência de provas da traficância - na análise do julgador - o fizesse ser liberado

Isso não significa, vale dizer, que as prisões revogadas pelo judiciário eram necessariamente ilegais, mas apenas que a interpretação de um e outro agente público não foi a mesma.

Em que pese o entendimento do STF, até o momento, não há como dizer que o uso de maconha foi descriminalizado no Brasil. Continua vigente o artigo 28 da lei nº 11.343/06, que se encontra no Capítulo II, “Dos Crimes e das Penas”, tendo todas as características de uma infração penal, incluindo as sanções subsistentes, já que sanções como prestação social alternativa e suspensão de direitos podem ser aplicadas para infrações penais, tal como previsto no artigo 5º, XLVI, da CF. 

O que aconteceu, após esse julgamento, é que uma das penas, ou seja, a prestação de serviços à comunidade, prevista no inciso II do artigo 28 da Lei de Drogas, foi afastada para o caso de usuário de cannabis sativa.

A mudança futura do procedimento, tirando a competência da justiça criminal, é o que mais trará problemas, seja pela ausência de controle dessas supostas infrações ou pela falta de disciplina para uma possível descriminalização. Se o legislativo, a quem compete decidir pela legalização da maconha, quisesse fazê-lo, teria que determinar diversas regras, como a fiscalização das vendas legais, quantidades permitidas, campanhas publicitárias para desestimular o uso e política de combate ao crime.

Outro ponto curioso, o qual gerou muito debate na sociedade, foi a fixação de uma determinada quantidade para se criar a figura da presunção de usuário.

Fontes diversas sugerem que 40 gramas de cannabis sativa seriam suficientes para preparar entre 30 e 130 cigarros de maconha, a depender da quantidade utilizada em cada um. Portanto, a partir da decisão do STF, o transporte de muitos cigarros de maconha deve ser encarado como porte para uso pessoal, ressalvada a existência e o registro de justificativa “minudente” para o afastamento da presunção. Basicamente, a quantidade se tornou critério mais relevante que os demais.

Com essa presunção, a autoridade policial ainda poderá analisar outros elementos que poderiam configurar o tráfico, como a existência de anotações de compra e venda, balança para aferir o peso da droga, troca de mensagens entre o fornecedor e o consumidor, entre outros. Contudo, não podemos negar que os traficantes utilizarão métodos criativos para não documentarem a comercialização, aumentando, ainda mais, a impunibilidade. 

Uma coisa é certa: a medida poderá incentivar o tráfico. Os traficantes agora terão uma estratégia a ser moldada com base na regra dos 40 gramas, assim, farão uso de mais fornecedores diretos para evitar a configuração do tráfico, por exemplo

Sabemos que já se utilizam de alguns elementos, como preferir vendedores sem passagem policial por tráfico. Mas agora terão um critério numérico para organizar as suas vendas, já que antes o critério de quantidade era avaliado caso a caso, e, na maioria das vezes, só pelo judiciário.

Se não bastasse, o STF proibiu que seja lavrado auto de prisão em flagrante ou termo circunstanciado quando os fatos demonstrarem que o autor poderia ser usuário, o que dificulta, sobremaneira, a verificação de reincidência da prática supostamente delitiva, já que não teremos um registro de todas as ações do investigado. 

Esses critérios definidos pelo STF, para o usuário de maconha, não impedem que a decisão seja também aplicada a usuários de outras drogas, pois poderá ser adotada como baliza nos julgamentos de casos regrados pelo artigo 28. 

Por mais que se tenha previsto que esses critérios serão observados, até que se tenha uma definição legislativa pelo Congresso Nacional, a tese servirá como base para as decisões judiciais ao longo do tempo, a não ser que se aprove um texto legal mais rígido do que o da Lei nº 11.343/06. 

Fato é que, desde essa época, o usuário tem recebido tratamento diferenciado ao do traficante, ocorrendo, inclusive, circunstância em que o traficante se utiliza de um benefício do usuário para não ser penalizado. 

Não julgo que eventual omissão legislativa poderia justificar a decisão e a legalização; afinal, a lei previa que a diferenciação entre porte e tráfico deveria ser feita, caso a caso, com base na análise das circunstâncias. Ademais, sugestões poderiam ser criadas pela jurisprudência, ou pelo próprio Conselho Nacional de Justiça, com a finalidade de desafogar o judiciário e evitar prisões injustas e excessivas. 

Argumentos como discriminação racial poderiam ser resolvidos em audiência de custódia, e o direito individual do usuário à intimidade e privacidade, inclusive de danificar a sua própria saúde, não deve prevalecer na ponderação de direitos e garantias do cidadão. Isso pois os efeitos à sociedade decorrentes de sua ação de consumir produto ilegal - que alimenta a existência das facções mais perigosas do mundo - já bastariam para caracterizar o dano a terceiros exigido quando da aplicação do princípio da lesividade. 

Por mais que sustentemos que, do ponto de vista técnico, não houve a descriminalização, na prática, a decisão reforça essa ilusão. Os usuários terão menos temor e isso aumentará o seu consumo, sem qualquer controle, enquanto os traficantes usarão de artifícios para perpetuar o comércio com riscos menores. 

Caberá, agora, ao Congresso Nacional, aprovar a PEC 45/2023 - já tramitada no Senado por 53 votos a 9, a favor da criminalização de todos os tipos e envolvimentos com drogas. Como também redefinir, por lei, critérios para caracterização do tráfico, pois o artigo 28 da Lei nº 11.343 não seria recepcionado por essa nova previsão.

Ações para o combate ao tráfico de drogas devem ser marcadas por políticas públicas definidas pelo Estado e respeitando os interesses da sociedade civil. O ativismo judicial pode trazer diversos impactos negativos nas ações públicas realizadas até então. 

Daí, dessa solução apresentada pelo STF, surgem as seguintes perguntas:

Poderíamos descriminalizar o uso da maconha sem refletir no restante da cadeia delitiva? Haveria algum crime pela aquisição de produto ilegal para consumo próprio? Essa despenalização prejudicará investigações com foco na perseguição dos chefes do tráfico? De quem e onde o usuário irá comprar o seu cigarro de maconha, já que ela continua proibida no Brasil? Considerando que a maconha não é produzida no Brasil, mas importada de países vizinhos, a legalização do porte para consumo seria um incentivo ao tráfico internacional de drogas? A ausência de medo no uso de drogas fará com que haja aumento de consumo? Como seria feito o controle da venda e por qual órgão? A liberação da maconha acabaria com a venda ilegal ou reduziria o tráfico de outras drogas? Como impedir que o traficante se utilize dos benefícios do artigo 28 da Lei nº 11.343/06 para não ser preso? A proibição da prisão em flagrante prejudicará a investigação?

Essas e outras perguntas estão ocupando os grandes debates nacionais, sem contar os efeitos na saúde, como psicose, esquizofrenia, depressão, ansiedade, diminuição ou perda da função cognitiva, doenças respiratórias, deficiência no desenvolvimento cerebral, dependência, entre outros.

O uso de maconha promove não somente danos individuais à saúde do usuário, mas a abordagem do uso da droga como algo normal e legal pode ser a porta de entrada para outras drogas, com efeitos mais nocivos, bem como o contato do usuário com associações criminosas.

A meu ver, a descriminalização não modifica esse ambiente, pois se porventura houver a legalização da maconha, ela continuará sendo comercializada no submundo, com maior interesse dos usuários, seja pelo preço atrativo (sem impostos ou de menor qualidade), ou pela qualidade ou espécie diversificada, apresentada de forma mais dinâmica pelos meios ilegais, que não dependerão de autorização de órgãos públicos, como a Anvisa. Além disso, com a quebra da associação da maconha às drogas ilícitas e a normalização do seu uso em ambientes públicos, o aumento do consumo acontecerá, indubitavelmente. 

Esses pensamentos devem ser compartilhados para que os poderes, de forma responsável, busquem alternativas para que a sociedade esteja livre da criminalidade e do uso de entorpecentes que danificam a saúde e causam vícios, chegando, até mesmo, a afogar o Sistema Único de Saúde. Acredito que até mesmo aqueles que são favoráveis à descriminalização das drogas desejam uma sociedade sadia e sem crimes. 

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Conteúdo editado por: Aline Menezes

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