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Os mensageiros do além sofreram uma dura derrota na Justiça brasileira.
Nesta terça-feira (21), a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que uma carta psicografada não pode ser usada como prova em um processo por homicídio.
O caso tem origem em homicídio ocorrido em 2009 no Mato Grosso do Sul. Segundo o voto do relator, uma carta psicografada não pode ser admitida como prova em um processo judicial por falta de “idoneidade epistêmica”. Em outras palavras, o juízo precisa tomar decisões com base apenas em evidências fundadas na razão.
Para o ministro Rogério Schietti, a despeito da controvérsia filosófica e dos esforços historicamente direcionados em torno da psicografia, não houve até o momento nenhuma evidência científica sólida de comprovação da comunicação com pessoas já falecidas.
“A crença na psicografia consiste em um ato de fé, o qual, por definição, prescinde de demonstração racional. Os atos de fé, seja ela religiosa ou não, são diametralmente opostos aos atos de prova, que visam justamente a demonstração racional e objetiva dos fatos alegados no processo”, apontou Schietti em seu voto, que foi apoiado de forma unânime pelos colegas.
Como resultado do julgamento do habeas corpus, a turma ainda determinou que a pronúncia (a decisão sobre mandar o réu para júri popular) só seja feita após uma nova análise do caso, sem que a carta psicografada nem as outras provas derivadas dela sejam aceitas no processo.
Carta psicografada foi incluída como prova pelo Ministério Público
A inclusão da carta psicografada como prova foi feita pelos promotores do Ministério Público de Mato Grosso do Sul durante a investigação do homicídio. Segundo a acusação, em 2010 a vítima do homicídio teria feito um contato mediúnico com um amigo de infância.
Na carta em questão, o falecido teria pedido ao pai que não buscasse por vingança, uma vez que a morte teria ocorrido “por engano” – essa, aliás, foi a tese defendida pelos promotores na oferta da denúncia. Na carta psicografada há frases soltas como “te amo”, “bj, ao pai”, “Ore por mim”, “saudade” e “Deus”.
A denúncia foi oferecida à Justiça em Três Lagoas, a pouco mais de 300 km da capital Campo Grande. O inquérito trazia, além da carta, depoimentos das testemunhas e laudos periciais de armas, veículos e da vítima.
O advogado do suposto mandante do crime entrou então com recurso no Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS) apontando ilegalidade no uso da carta como prova. O pedido foi negado pelo tribunal, e um novo recurso foi levado ao STJ.
Procurador da República disse que carta psicografada não é prova ilícita
Na corte superior, o procurador da República Uendel Domingues Ugatti defendeu o uso da carta afirmando que não se trata de prova ilícita. Ele ainda apontou que a carta não era o fundamento central da acusação, e questionou se a Justiça não estaria sendo paternalista ao tirar a possibilidade de uma eventual análise da carta pelos jurados.
“Seria um verdadeiro paternalismo epistêmico retirar do júri uma competência que lhe é soberana de avaliar todas as provas, inclusive de ordem econômica, sociológica e religiosa”, alegou, pedindo que a carta possa ser utilizada tanto pela defesa quanto pela acusação.
Para advogado, é impossível contradizer a carta psicografada
Em sua fala, o advogado de defesa sustentou que a psicografia era “o coração” da acusação e que tal prova violaria o princípio do contraditório. “Como se contraditaria essa prova? Pediria esse advogado a presença de um médium em plenário para psicografar uma outra carta refutando essa? O que se tornaria esse Tribunal do Júri?”, questionou.
Carta deverá ser retirada dos autos e não será aceita como prova
A proposta de anular a pronúncia – que é a decisão do juiz de mandar o réu para júri popular – partiu do ministro Og Fernandes. “Se [a carta] permanecer nos autos, sem que seja corrigido, quer por uma nova decisão, quer com os riscos que Vossa Excelência está propondo, nós teremos a possibilidade de anulação do plenário”, alertou.
Além do relator, o ministro Sebastião Reis Júnior concordou com a hipótese de que o juízo de origem reavalie e corrija os atos processuais já proferidos. Com isso, devem ser retirados do processo original a carta e todas as referências a ela e aos depoimentos relacionados à psicografia. Assim, entenderam os ministros, estaria garantido que essas provas não sejam utilizadas no plenário do júri.
A reportagem entrou em contato com o Ministério Público do Mato Grosso do Sul pedindo um posicionamento do órgão sobre a decisão do STJ em negar o uso da carta psicografada como prova. Até a publicação desta reportagem não houve resposta. O espaço segue aberto para manifestações.
Pesquisa da UFJF não indicou nenhuma evidência de que psicografia é real
Em 2020, uma equipe do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde (Nupes), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), publicou uma pesquisa sobre cartas psicografadas escritas por um médium e supostamente ditadas por pessoas já falecidas.
Um grupo de cinco integrantes do Nupes, incluindo dois estudantes de Medicina, pediu a oito médiuns que psicografassem mensagens, e as cartas foram, depois, avaliadas pelos parentes ou amigos aos quais elas estariam endereçadas. Os resultados da pesquisa não indicaram nenhuma evidência de que o fenômeno da psicografia é real.
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A pesquisa adotou uma série de protocolos para garantir que os médiuns não conseguissem nenhuma informação antecipada sobre as pessoas mortas, a não ser uma foto e o primeiro nome.
As 18 sessões de psicografia deram origem a 78 cartas e 64 descrições orais, que foram transcritas pela equipe do Nupes. Os pesquisadores, então, fizeram uma triagem rigorosa, excluindo todas as mensagens que não traziam nenhuma informação que pudesse ser factualmente comprovada pelo consulente.
No fim, das 94 pessoas que enviaram fotos de parentes ou amigos falecidos, 46 receberam o material produzido pelos médiuns para análise, e 39 responderam aos pesquisadores. Dos que avaliaram as cartas, 70,8% deram nota zero para a psicografia, afirmando com certeza que aquelas palavras não eram de seus amigos ou parentes.








