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Uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ameaça uma das prerrogativas fundamentais da advocacia e dos cidadãos: o direito à sustentação oral. Essa prática, que permite ao advogado apresentar argumentos diretamente ao magistrado, será alterada com a substituição da modalidade presencial pelo envio de vídeos ou áudios anexados aos processos. A norma, que entra em vigor no próximo dia 3, gera preocupação entre juristas, que alertam para o risco de juízes e desembargadores sequer assistirem ao conteúdo, comprometendo o direito à ampla defesa garantido pela Constituição Federal.
A sustentação oral é essencial para que o advogado destaque diretamente ao juiz os pontos mais relevantes do caso em defesa de seu cliente. Com a nova resolução, os advogados terão que solicitar ao juiz relator a realização da sessão de forma presencial, mas a decisão caberá ao magistrado. A resolução será aplicável a todos os julgamentos realizados por colegiados.
O mestre em Direito Criminal, Bruno Gimenes, ressalta a incompatibilidade da mudança com a Constituição Federal. “Essa resolução viola claramente o artigo 91 da Constituição, que prevê que os julgamentos serão transparentes e públicos. Além de atingir a ampla defesa, em especial do acusado em um processo criminal, porque limita a atuação da advocacia”, afirma.
Uma petição apresentada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) solicitou a suspensão da resolução do CNJ. "Privar o advogado do direito de debater oralmente a causa representa, sem dúvida, limitação ao direito de defesa e amplo contraditório", afirmou. A entidade solicitou que, ao menos, os pedidos de destaque – para que a sessão seja presencial – sejam automaticamente acolhidos pelo relator.
STJ segue passos do CNJ e regulamenta sessões assíncronas com parâmetros semelhantes
Maurício Bunazar, pós-doutor em Direito Civil pela USP, alerta para os prejuízos da nova norma do CNJ, especialmente pela ausência de garantias de que os ministros assistirão aos vídeos enviados pelos advogados. “A sustentação oral é o momento em que o advogado expõe face a face as suas razões aos julgadores. É quando ele pode chamar a atenção para pontos que muitas vezes passaram despercebidos, o que pode mudar o entendimento do magistrado sobre o caso”, explica.
Embora seja um defensor das sessões virtuais, Bunazar destaca que elas devem ser realizadas de forma síncrona, com a presença simultânea de juízes e advogados em uma chamada de vídeo. Esse formato ganhou força durante a pandemia da Covid-19 e facilitou o trabalho de todos os envolvidos. “A resolução, de uma maneira quase cínica, diz que nós, advogados, podemos gravar um vídeo com a nossa sustentação oral e enviar ao tribunal para que os desembargadores assistam. É óbvio que eles não assistirão, pois estão sobrecarregados”, reforça.
A adoção do formato assíncrono não é inédita. O Supremo Tribunal Federal (STF) o adotou nos julgamentos dos envolvidos nos atos do 8 de janeiro. Depois dos primeiros julgamentos serem realizados presencialmente, o relator, ministro Alexandre de Moraes, optou pelo formato virtual. Durante uma dessas sustentações presenciais, o ex-desembargador Sebastião Coelho dirigiu-se aos ministros dizendo que eles “são as pessoas mais odiadas nesse país”.
Apesar da resolução do CNJ entrar em vigor apenas em 3 de fevereiro, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já regulamentou o procedimento de sessões assíncronas. Em relação à sustentação oral, o STJ segue os mesmos parâmetros do que foi indicado pelo CNJ. Caberá ao ministro decidir se aceita o pedido da parte para uma sessão presencial.
Bruno Gimenes reforça que restringir a atuação da advocacia afeta diretamente o cidadão. “O jurisdicionado, que é o cidadão, acaba refém de um tribunal que, ao invés de se tornar mais transparente na era da tecnologia, fica menos”, conclui.
Jurista apoia projeto de lei na Câmara para garantir sustentação oral por videoconferência
O tema foi recentemente analisado pelo Congresso Nacional. Em 2022, a Lei 14.365/2022, que atualizou a lei do Estatuto da Advocacia, foi sancionada. Entre as alterações, a legislação ampliou o uso da sustentação oral em qualquer tribunal judicial ou administrativo. A nova redação garante que os advogados poderão usar a palavra “pela ordem” para fazer intervenções pontuais ou para esclarecer equívocos. Além disso, a recente lei estendeu a possibilidade da sustentação oral contra decisões monocráticas e outros recursos.
Apesar das conquistas, a resolução do CNJ, que é um órgão fiscalizador da magistratura, contraria essas mudanças. Para Gimenes, “o CNJ não está ali para revolucionar o judiciário brasileiro ou, menos ainda, a advocacia”. “Enquanto todas as leis processuais aprovadas pelo Congresso preveem julgamento público, vem o CNJ, por meio de uma norma que deveria obedecer à legislação, e favorece o conforto dos tribunais em detrimento dessas garantias legais”, acrescenta.
Atualmente, também tramita na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 3.388/2020. A proposta busca garantir uma comunicação direta e imediata entre as partes e os julgadores, por meio de sessões presenciais ou sessões virtuais síncronas, ou seja, feitas por videoconferência.
O deputado Paulo Abi-Ackel (PSDB-MG) apresentou um parecer favorável, em junho de 2023, mas, até o momento, o projeto não foi apreciado. “Essa pauta é uma pauta supra-ideológica, não vou dizer nem suprapartidária. Ela não é uma pauta de esquerda, ela não é uma pauta de direita. Ela é uma pauta de liberdade individual e, por isso, deve receber o apoio de todos os parlamentares”, defende Bunazar, que apoia a proposta.
Gimenes também alerta para os riscos do mau uso da tecnologia no Judiciário. Ele teme que a virtualização excessiva possa abrir caminho para decisões automatizadas por inteligência artificial. “Nosso receio é que, no futuro, as sessões virtuais se tornem regra e as decisões passem a ser feitas por computadores, que analisarão as petições e produzirão sentenças automáticas. Isso não é justiça”, finaliza.